O hara-kiri dos políticos
Independentemente da culpabilidade ou inocência de cada um dos visados, há objetivamente uma crise moral na política que é preciso discutir e resolver
Ler as primeiras páginas dos jornais e pensar: “Que país é este?” O desabafo de alguém – que não conheço – nas redes sociais resultava de uma conjugação trágica de notícias que envolvem deputados, um ex-primeiro-ministro, um ex-ministro, banqueiros e empresários. A nata da nata, que se vai desnatando todos os dias à velocidade do som. Sendo todos inocentes até prova em contrário, todos somos bombardeados com informação que só nos pode levar a fazer a mesma pergunta vezes sem conta: que país é este?
Este é o país onde há políticos e partidos que resolvem fazer demagogia com a devolução de rendimentos. Para os quais os trabalhadores dos gabinetes políticos são diferentes de quaisquer outros e por isso não merecem que o Estado lhes devolva o que lhes retirou.
Este é o país onde o Bloco de Esquerda, o CDS e Fernando Negrão procuram capitalizar uns votos, aproveitando-se da imagem cada vez mais degradada que os portugueses já têm dos políticos. Não compreendendo que, amanhã, podem ser eles as vítimas do populismo dos outros e que nada pode ser restaurado com uma marreta, mas com escopro e martelo de cinzel.
Este é o país onde os deputados acham moralmente aceitável receber do Estado um subsídio de deslocação e acumular um desconto de residente pago... pelo Estado. Ou manter, por conveniência, a morada fiscal fora de Lisboa, vivendo na capital, apenas para ir buscar mais uns cobres aos contribuintes.
Este é o país onde um deputado do Bloco de Esquerda, apanhado nas viagens que o Estado subsidia duas vezes, decide anunciar uma renúncia que já estava em marcha, usando um truque infantil e demagógico para capitalizar a seu favor, e a favor do partido que representa, mais uns votos.
Este é o país onde uma deputada do PSD tem um rebate de consciência quando o seu nome sai na primeira página de um jornal e decide devolver o dinheiro que, até esse dia, achou moralmente aceitável ir buscar.
Este é o país onde os políticos não têm coragem de explicar aos cidadãos que alcavalas como estas – e tantas outras que não cabem neste texto – só existem porque a classe política é mal paga em Portugal. Pela responsabilidade e pelo nível de competência que se lhes exige. E que esse é um dos principais motivos para tanta gente competente fugir de cargos políticos. Mas defender isto significa perder votos, logo, o lugar de político e todas as alcavalas que daí advém.
Este é o país onde os políticos gostam de adornar os seus currículos para parecerem melhores e maiores. Cometem disparates que lhes saem caros a eles e muito mais caros à democracia.
Este é o país onde um ex-primeiro-ministro é acusado de ter montado, em benefício próprio, um esquema de máfia pós-moderna, capaz de lhe render milhões de euros, utilizando para isso o poder que o país lhe deu.
Este é o país onde um ex-ministro é suspeito de ter recebido uma avença de um banqueiro quando era ministro e depois de o ser. E não consta que fossem amigos há 40 anos.
Este é o país onde a promiscuidade entre políticos, banqueiros e grandes empresas atravessa o Bloco Central e não deixa, a nenhum dos dois maiores partidos em Portugal, margem para atirar pedras. Mas abre uma oportunidade – sempre desperdiçada – para reconstruir as bases de confiança entre cidadãos e políticos.
Nada ficará como dantes e era bom que todos tivéssemos consciência disso. O que se tem passado nos últimos anos em Portugal terá consequências sérias para a democracia se os partidos políticos não forem capazes de travar este verdadeiro hara-kiri. Se não deixarem de lado a demagogia e o populismo barato. Se não forem capazes de fazer uma introspeção e deixar de analisar a atualidade como “mais um episódio” a que é preciso sobreviver. Independentemente da culpabilidade ou inocência de cada um dos visados, há objetivamente uma crise moral na política que é preciso discutir e resolver.
“Que país é este?” A resposta a esta pergunta tem muito mais de complexo do que parece. Porque não se esgota nesta inquietação que sentimos de cada vez que folheamos as páginas de um jornal. Este é também o país onde a justiça, com todos os defeitos que tem, procura encontrar-se a si própria. Investiga, interroga e julga, se for caso disso, sem medo dos poderosos. É o país onde ainda há políticos sérios, que se entregam à causa pública e que têm o sentido de dever no devido lugar. Este é o país onde a comunicação social – com todos os defeitos que lhe queiram apontar – continua a escrutinar, a perguntar e a explicar. Este é o país onde não podemos e não devemos tomar a parte pelo todo.