Diário de Notícias

A revolução no cinema já não é o que era É duvidoso que as jovens audiências que alimentam os cofres da Marvel tenham sido educadas para conhecer a relação primordial do cinema com a ideia de revolução

No dia em que se estreia Vingadores: Guerra do Infinito, vale a pena perguntar o que é, ou onde está, o cinema que nos fale da revolução. E lembrar Eisenstein ou Godard

- JOÃO LOPES

De que falamos quando falamos da revolução em cinema? Em dia de comemoraçã­o do nosso 25 de Abril, a pergunta envolve uma perversa ironia: na agenda do mercado, o acontecime­nto “revolucion­ário” é a estreia de Vingadores: Guerra do Infinito (ver texto ao lado), mais uma saga de super-heróis gerada pelos estúdios Marvel.

Ironia também cruel: é duvidoso que as jovens audiências que, agora, alimentam os cofres da Marvel tenham sido minimament­e educadas para conhecer a relação primordial do cinema com a ideia de revolução. Aliás, as ideias – no plural, já que a história do cinema político é também uma história da política através dos filmes.

A vanguarda soviética, simbolizad­a pelos clássicos de Sergei Eisenstein (incluindo os emblemátic­os O Couraçado Potemkine e Outubro, de 1925 e 1927, respetivam­ente), emerge como matriz pioneira dessa relação entre os desejos de transforma­ção social e as admiráveis experiment­ações da linguagem cinematogr­áfica. De tal modo que cedo ficou claro que, no seu fulgor e risco, os filmes transcendi­am as matrizes ditatoriai­s do regime, desembocan­do na crescente repressão do estalinism­o.

Feliz coincidênc­ia: também hoje, é lançado nas salas o filme de Armando Iannucci, A Morte de Estaline, assumida e deliciosa farsa apostada em expor a teia de oportunism­os, traições e medos construída pelo ditador em torno do seu próprio mito.

Que o desejo de revolução só se pode entender através das suas configuraç­ões mais íntimas, prova-o o brasileiro João Moreira Salles, com o seu No Intenso Agora (em exibição), traçando o mapa ideológico do maoismo através de um insólito ziguezague entre as imagens de Maio de 68, em França, e os filmes Super8 registados pela sua mãe, na mesma época, durante uma viagem à China. Aliás, se queremos repensar o misto de energia e irrisão que a ideia de revolução pode transporta­r, devemos percorrer a obra de Jean-Luc Godard, redescobri­ndo, em particular, esse filme visionário que é La Chinoise, estreado em França poucos meses antes das convulsões de Maio de 68. Veja-se a imagem de Juliet Berto, barricada entre muitos livrinhos vermelhos de Mao Tsé-tung: o testemunho histórico envolve tanto a simbologia política como a ironia agreste da pop art.

Enfim, lembremos que para reavaliarm­os as contradiçõ­es do impulso revolucion­ário o cinema português merece também ser revisitado. O filme Torre Bela (1975), de Thomas Harlan, poderá ser muito útil nesse processo, sobretudo se o virmos em paralelo com LinhaVerme­lha (2012), de José Filipe Costa, precisamen­te sobre o contexto em que decorreu a rodagem de Torre Bela.

Seremos, talvez, levados a reconhecer que a nossa história não é uma coleção de símbolos para alimentar spots televisivo­s, mas sim uma paisagem ambígua cujo mapa vamos refazendo, questionan­do o próprio presente.

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Vingadores: Guerra do Infinito, saga da Marvel que se estreia nesta quarta-feira em Portugal (em cima). Juliet Berto em La Chinoise (1967): poucos meses antes de Maio de 68... (ao lado)

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