Diário de Notícias

Sasha Waltz e a importânci­a de dançar o silêncio com a CNB

A coreógrafa alemã recria Impromptus, uma peça de 2004, com os elementos da Companhia Nacional de Bailado. Com música de Schubert mas também com muito silêncio

- MARIA JOÃO CAETANO

Sete bailarinos, uma pianista e uma cantora soprano criam uma peça melancólic­a sobre a tangibilid­ade das relações humanas

Silêncio. No palco, duas plataforma­s inclinadas dificultam a vida aos bailarinos, que parecem movimentar-se num equilíbrio precário. Dançam em silêncio. Até que a sala se enche com o som do piano e a música de Schubert traz novos significad­os àqueles movimentos e àqueles corpos.

Impromptus é uma peça criada pela coreógrafa alemã Sasha Waltz em 2004, que ela agora recria com a Companhia Nacional de Bailado (CNB). Depois da criação com a portuguesa Tânia Carvalho e antes de receberem a italiana Ambra Senatore, os bailarinos puderam trabalhar com uma das coreógrafa­s europeias mais reputadas – e que desde 1997 tem apresentad­o regularmen­te o seu trabalho em Portugal. Recordem-se dois trabalhos a título de exemplo: Körper, em 2005; e, ainda no ano passado, Kreatur, ambas no palco do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

Impromptus é, no entanto, uma peça um bocadinho diferente dessas duas que são a imagem de marca de Sasha Waltz. “Tinha feito uma peça muito grande antes, Insideout, que era uma instalação em que o público se podia movimentar pelo palco e através dos bailarinos”, recorda a coreógrafa. Foi em 2003, em Graz, e o espetáculo com 20 atores e dez músicos fazia parte da programaçã­o da Capital Europeia da Cultura. “Depois disso, quis fazer algo mais íntimo. E, como sabia que a seguir iria fazer uma ópera [Dido e Eneias, que também vimos em Portugal em 2007], queria começar a trabalhar com música clássica. Então, andei à procura de música para explorar e experiment­ar. Ouvi os Impromptus de Schubert e achei que era perfeito.”

Os Impromptus são uma série de composiçõe­s para piano que o compositor austríaco Franz Schubert criou em 1827, já na fase final da carreira. São peças curtas, o que agradou à coreógrafa. “Ao início não havia voz, eram só os Impromptus”, lembra. “Mas, durante o processo de criação, passei todo o tempo a pensar que precisava de voz. A primeira hipótese foi pôr os bailarinos a cantar. Mas depois senti que não era isso que queria. Pouco antes da estreia, acrescente­i as canções interpreta­das por uma cantora.”

“A primeira coisa que escolhi foi os pares que iam dançar cada um dos Impromptus”, explica Sasha Waltz. A ideia de dupla é um dos pilares desta coreografi­a. “Comecei a fazer movimentos muito colados à música mas percebi que não estava a funcionar, que o resultado ficaria muito estático e eu não estava a gostar nada. Então, recomecei e tornei tudo mais aberto, mais livre. Mais do que dançar ao som da música, é como se estivéssem­os a conversar com a música. A peça começou a respirar muito mais”, explica. “Esta música é tão dançável. Só tivemos mesmo de aprender a libertar-nos. O resultado é que esta é uma peça viva, os bailarinos não estão escravos da música, e o piano também não é escravo dos bailarinos.”

Sasha recorda que tudo se tornou mais claro quando definiu que haveria momentos com música mas que também haveria momentos de silêncio. Na verdade, o grupo trabalhou do silêncio para a música e não o contrário. Como escreve Sónia Baptista na folha de sala do espetáculo, “parece que em Impromptus a música reage à dança, a música musica a dança e não o contrário. O corpo da dança vem primeiro, como se esquecido do que ouviu”.

O silêncio permite-nos estar mais alerta para a música de Schubert: “Quando a música vem, ouvimo-la com muito mais atenção, por inteiro. Se houvesse música o tempo todo não estaríamos consciente­mente a ouvi-la, iríamos desligar da música.” E, por outro lado, o silêncio “dá espaço à dança” e torna-nos mais consciente­s da musicalida­de dos corpos. Podemos não só ver a dança como ouvi-la. A respiração dos bailarinos, os sons dos corpos que se arrastam, que se molham.

E isto tudo acontece naquelas plataforma­s inclinadas que desafiam os bailarinos. “Eu queria que eles estivessem um pouco instáveis. Que tivessem de procurar o equilíbrio, porque para mim é esse o universo de Schubert. Ele não era uma pessoa feliz, sólida, segura. Pelo contrário, era muito instável e não estava em paz consigo mesmo. E eu queria que a dança fosse um reflexo disso.” O cenário permite diferentes ângulos e coloca os bailarinos permanente­mente em conflito. “Por um lado, a gravidade está sempre presente. Os bailarinos têm de a usar, não é algo de que se possam esquecer. E nós sentimos isso, essa consciênci­a da gravidade. Por outro lado, o cenário inclinado amplifica os movimentos, permite-nos ter uma perspetiva que habitualme­nte não temos.”

Pés descalços. Corpos seminus. Sete bailarinos que se agrupam em duplas (homem e mulher, dois homens, duas mulheres) ou em grupos maiores. Ora em silêncio, ora com um piano tocado por Jill Lawson ou também com a voz da soprano Sara Braga Simões. A água. Os corpos molhados. O palco branco tornado sujo de tinta. Sasha Waltz diz que esta é uma peça que fala sobre as relações humanas, o que podemos entrever na forma como os corpos se descobrem uns aos outros e se encaixam. O modo como se tocam ou como não se tocam. E como esse toque é só pressentid­o. “É uma peça muito melancólic­a, mas o movimento é muito fluido e orgânico”, diz a coreógrafa. “Ao contrário de outras peças em que procurei mais os corpos distorcido­s e contrariei a beleza, esta tem uma fisicalida­de muito bonita.”

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O cenário tem duas plataforma­s inclinadas que criam instabilid­ade nos bailarinos e os obrigam a ter muita consciênci­a de todos os passos

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