Diário de Notícias

“Li o episódio-piloto de A Mulher do Senhor Ministro com Paulo Portas à minha frente”

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ANA SOUSA DIAS É no estúdio onde gravou a Senhora Dona a Quem Tudo Faz Espécie que a entrevista decorre. O texto vinha escrito à mão, e depois de uma versão com alguma hesitação fez uma outra com todas as inflexões da viúva um pouco tonta que não se entende com a vida de hoje. Ela aparece na televisão todas as semanas, exuberante no DDT, discreta no 1986. Diz que é tímida e que o público gosta dela porque se identifica com a banalidade da sua vida. Quer fazer no teatro o monólogo Shirley Valentine, uma mulher só na sua cozinha. Como passaste de secretária para os palcos? Era uma péssima secretária. Já tinha um filho e os meus pais acharam que estudar secretaria­do era uma coisa certa para mim. E fui, não tinha decidido o que gostaria de fazer. Arranjei um emprego como secretária de administra­ção. O meu trabalho era o mais bem feito que eu conseguia fazer, não era mal feito, o que eu detestava aquilo não tem explicação. Ao fim de uns anos percebi que não era aquilo que queria para a minha vida. Tinhas tendência para o espetáculo? Nasci palhaçorra, era a palhacita da família. Na escola menos, porque era bastante tímida. Era mais observador­a do que participat­iva, era bem-comportada. Em casa conseguia soltar-me, o núcleo familiar era muito unido, havia festas, aniversári­os, jantares. Comecei aí a abrir o meu leque de palhaçorri­ce. Como percebi que tinha algum público, a coisa foi-se desenvolve­ndo. Nas festas de família, com os meus primos e primas, fazíamos o entertainm­ent, e eu era líder daquilo

tudo. Tive a sorte de os meus pais me levarem muito ao teatro e ao cinema desde pequenina. Quando comecei a ver teatro para crescidos, percebi que gostava de ser uma daquelas pessoas e que aquilo era uma coisa poderosa, no sentido de pôr uma plateia presa a um texto, a uma pessoa, a três atores. Ou era uma maneira de ultrapassa­r a timidez. Gostava de comédia e da interação dos atores. Lembras-te de alguém em particular? Lembro-me do Rui Mendes, no Teatro Adóque, numa das primeiras revistas a seguir ao 25 de Abril. Lembro-me de uma cena em que ele interagia com o público e descia do palco até à plateia. Fiquei fascinada, como se ele tivesse saído do ecrã e fosse uma coisa mágica, como se aquela criatura não devesse ter descido. “Olha, isto é possível, aqui está uma coisa que eu gostava de fazer.” E realmente estreaste-te no Adóque. O meu núcleo de amigos era principalm­ente de músicos, mas toda a gente das artes se cruzava, ali pelos Vavás [café Vavá, em Alvalade] desta vida. Passava-se muito tempo no café a conversar, a trocar ideias. Conheci o Henrique Viana, um dos fundadores do Adóque, e propôs-me fazer uma audição. Fiquei e acumulei o escritório com o Adóque, onde fiquei depois da audição, com uns papelinhos pequeninos. Encaixei-me bem e gostei muito. No horário de expediente, ia dormir para o escritório, à noite ia fazer teatro. Um dia o senhor francês que mandava na empresa disse: “Se calhar era melhor fazer uma opção.” Fiz a opção, com muito medo. No dia em que me estreei no Adóque, os meus pais foram lá, mandaram-me um enorme ramo de flores e o meu filho escreveu um bilhete a desejar-me boa sorte na nova profissão. E parece que não correu mal. Foste a dois festivais da Eurovisão. Sim, na condição de cantar com outras pessoas, coros bem feitinhos sem desafinar. Sempre que participav­a, a canção ganhava. Mas não canto bem, cantar bem tem muito que se lhe diga. E apareceu na tua vida o Júlio Isidro. Tivemos um caso de amor, durante dois anos. Eu adoro o Júlio. Enquanto estivemos juntos foi muito feliz, depois continuámo­s amigos e a trabalhar um com o outro. Cada um de nós encontrou depois a sua metade com quem ainda está. Comecei a fazer televisão desafiada – não assediada – pelo Júlio Isidro, no Fungagá da Bicharada, no Passeio dos Alegres , fui andando por aí fora. A culpa é dele. Tens outro culpado que é o Herman. São culpados de categoria! O Zé Nabo, com quem sou casada há 37 anos, tocava na banda do Tony Silva, no Tal Canal. Assisti a algumas gravações e ficava fascinada com o génio, a inteligênc­ia, a relação com as pessoas, de uma educação exemplar! Não conheço ninguém que trabalhe daquela maneira, tão calma, tão certeira. Um dia enchi-me de coragem e disse-lhe que queria trabalhar com ele. Convidou-me e continuámo­s sempre a trabalhar. Depois começaste a escrever os textos. Não havia autoras de comédia. Foi o Herman que me deu, no Parabéns, cinco minutos para um sketch que fazia com o Vítor de Sousa. Foi ele que me pôs a voar. Quando dizem que o Herman suga as pessoas é mentira. Ele sabe que quanto melhor for o teu colega, melhor vai o teu programa. E não tiveste medo? Pavor. É pôr a cabeça no cepo. As pessoas adoram julgar, sobretudo os meus pares. Uma mulher é julgada com muito mais violência, porque a comédia é uma coisa de homens, continua a ser. Como te aparecem as personagen­s? Continuo a ser observador­a. Se estou no supermerca­do ou numa esplanada, estou sempre a observar. A Senhora Dona do faz-me espécie existe, é de um bairro tradiciona­l, conservado­ra, viúva, não percebe as modernices, tenta encaixar-se. Estas senhoras existem. Como apareceu A Mulher do Senhor Ministro? O José Eduardo Moniz perguntou-me: “Quero fazer uma série chamada A Mulher do Senhor Ministro. Queres escrever e fazer?” Quero. Cheia de medo. Deu-me duas ou três ideias, fui para casa escrever o primeiro episódio. Era a tomada de posse do ministro, ainda ela não tinha aquele cabelão, ainda tinha um rabo-de-cavalo. Ele toma posse e o cabelo toma posse dela. Fui a casa do Zé Eduardo, onde estavam o Pedro Curto e a Manuela Moura Guedes, e também o Paulo Portas. “Olha a minha vida, então eu agora vou ter de ler o episódio à frente desta gente toda, com o Paulo Portas a olhar para mim?” Adoraram e avançou-se com a série. Fizemos cinco séries, até cair para a banda de cansaço. Foi quando foste ministra. Tinha de se refrescar aquilo. O Rocha, coitadinho, já não dava, reformou-se e eu transforme­i-me em ministra. Na série 1986 és muito normal. Gostei muito de fazer aquela personagem e do texto do Markl, tinha grande confiança no realizador. O desafio para mim era não fazer mais do mesmo. Embora aquilo tenha um tom muito leve, e aquela senhora tenha alguma leveza, não fui fazer palhaçorro­s. Devo dizer-te que estou um bocadinho cansada disso. Se calhar é por não ir para nova e andar nisto há muitos anos. Fazes televisão, o teu corpo, a tua cara são muito visíveis. Como vives as mudanças da idade? Aquilo que sou não condiz com a idade do bilhete de identidade. É uma batalha de todos nós, acredito que contigo seja o mesmo. Temos a sorte de trabalhar em meios com muita informação, somos curiosas, estamos a par do que acontece, das novas tecnologia­s. E há muitas mulheres assim, felizmente. Não tenho nenhum desejo de transforma­r a minha cara, nem uma injeção de botox. Enquanto eu não mexer na cara e no corpo, é sinal de que o meu cérebro consegue ultrapassa­r isso e que encaro o envelhecim­ento com harmonia. Vais voltar a fazer Ana Bola sem Filtro? Com certeza, cada vez há mais matéria. A minha vontade é fazer cada vez menos televisão e cada vez mais teatro. Já fiz televisão com muitas condições, com as melhores pessoas. Continuo a trabalhar com as melhores pessoas mas não com as melhores condições. Andámos de cavalo para burro, porque “não há dinheiro”. Há dinheiro mas não há para nós. Não tenho idade para isso. E o palco é outra coisa? O palco é outra coisa, não tem nada que ver. Na plateia estão as pessoas que pagaram o bilhete e foram para te ver, para gostar de ti. Quando corre bem, e é quase sempre, sais com os pés no ar, é quase um alívio. É uma coisa muito mais humana, direta, limpa. Tenho uma peça para fazer, Shirley Valentine [do dramaturgo inglês Willy Russell]. Não sei se vou estreá-la já em outubro ou em janeiro. É um monólogo de uma mulher que está sozinha numa cozinha, uma comédia com o seu quê de acidozinho. É um excelente texto inglês que está muito bem traduzido e que quero muito fazer.

“Nasci palhaçorra, era a palhacita da família. Na escola menos, porque era bastante tímida. Era mais observador­a do que participat­iva, era bem-comportada” “Foi o Herman que me deu, no Parabéns, cinco minutos para um sketch que fazia com o Vítor de Sousa. Foi ele que me pôs a voar, a escrever” “A minha vontade é fazer cada vez menos televisão e cada vez mais teatro. Já fiz televisão com muitas condições, andámos de cavalo para burro”

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