Uma lição americana sobre dívida pública
Orecente encontro entre Macron e Merkel deixou ficar no papel as tímidas propostas do primeiro. A calmaria permitida pelas compras de ativos do BCE esconde a tempestade que se avizinha se nada for feito para aliviar a dívida pública, esse elefante na sala que fez a Moody’s deixar Portugal no “lixo”. Berlim está contente com este euro barato que lhe permite catapultar as suas exportações. Aos países que viram as suas dívidas públicas ampliadas, por erros próprios, mas também pela péssima arquitetura do euro e pela lastimável gestão germano-gaulesa da crise da zona euro (ZE) entre 2009 e 2013, restará continuar a apertar o cinto. Centeno tem razão num guião errado.
Bismarck escreveu que é inteligente aprender com os erros alheios, contudo, os regedores da ZE nem com os seus aprendem. O modo exemplar como Alexander Hamilton (17551804) transformou a dívida dos EUA no cimento para a unidade da futura superpotência contrasta com o provinciano egoísmo europeu. Ele foi o primeiro secretário do Tesouro do governo de Washington, e um dos obreiros da Constituição elaborada em Filadélfia, em 1787, tendo organizado a obra O Federalista (a Gulbenkian reeditou este clássico em 2011, tendo por base a tradução que coordenei em 2003). Em 1790, os EUA estavam à beira da rutura. A principal razão mergulhava nos conflitos entre Estados relacionados com grandes “dívidas soberanas” acumuladas durante a Guerra de Independência. Quem conheça a época ficará espantado com a familiaridade das situações e argumentos. O Massachusetts queixava-se do Connecticut ou de Maryland, por estes terem sido poupados ao esforço de guerra (e de dívida). A Virgínia, embora tivesse sido um terrível campo de batalha, já tinha saldado metade da sua dívida, enquanto Nova Iorque se mantinha numa situação de deliberado incumprimento. Existiam credores na Europa (bancos holandeses e até britânicos, das dívidas anteriores à guerra), mas sobretudo cidadãos americanos que se viam à beira da falência, com títulos de dívida sucessivamente desvalorizados.
Hamilton não leu Marcel Mauss, mas sabia que também em política a dádiva pode gerar dívidas simbólicas de lealdade, sem as quais nenhuma sociedade subsiste. Não leu Nietzsche, mas concordaria que a retórica de transformar as dívidas (Schulden) em culpa moral (Schuld) – dogma central da austeridade ordoliberal – é um mecanismo de opressão sem rigor científico. Por isso, Hamilton lançou entre 1790 e 1791 o plano económico que salvou os EUA como união federal. Vencendo uma dura oposição, ele continha três medidas fundamentais: a) mutualização de toda a dívida estadual, transformada em dívida federal (trocando-se os títulos antigos por novos), restaurando a confiança dos mercados com o pagamento de juros e a promessa de vencimento posterior; b) criação do Banco Nacional (em fevereiro de 1791), com a função de ser o credor de última instância para o frágil e desorganizado sistema bancário da época, e fonte de recurso para o financiamento público; c) criação de um plano de fomento industrial para o emprego e a revitalização económica. O sucesso do plano permitiu que em 1803 Jefferson juntasse a Louisiana francesa aos EUA por 15 milhões de dólares, emprestados com juro favorável. É claro que não está em causa repetir integralmente na ZE de 2018 o que os EUA fizeram em 1790. A lição de Hamilton é de método e de princípio: não se pode obter a confiança dos mercados numa união de Estados sem sonho partilhado de futuro, e quando o vínculo maior reside na desconfiança e medo mútuos.
A lição de Hamilton é de método e de princípio: não se pode obter a confiança dos mercados numa união de Estados sem sonho partilhado de futuro, e quando o vínculo maior reside na desconfiança e medo mútuos