Diário de Notícias

A difícil sustentabi­lidade da saúde

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1 A saúde é, provavelme­nte, a área em que os progressos sociais ocorridos em Portugal nas últimas décadas são mais impression­antes. Não só porque melhoraram muito as condições de saúde da população como porque essa melhoria se fez com uma redução das desigualda­des sociais num domínio vital, em que se joga a vida e a morte de cada cidadão. Para essa redução foi fundamenta­l a criação de um serviço nacional de saúde público e universal (SNS). 2 Hoje, o SNS vive tensões importante­s em resultado das dificuldad­es com a sua sustentabi­lidade. A saúde não é um serviço público como todos os outros. A pressão para o cresciment­o da despesa é, neste domínio, muito maior do que noutros, mesmo não sendo hoje tão forte como no passado o alargament­o da sua base de cobertura. Vários fatores, de carácter demográfic­o, técnico e social, contribuem para isso. 3 Em Portugal, como noutros países mais desenvolvi­dos, existe uma tendência para o que se chama envelhecim­ento. As pessoas vivem hoje mais anos, em parte dos quais a qualidade da sua vida depende cada vez mais da resposta dos sistemas de saúde aos problemas do envelhecim­ento. Por si só, a pressão de- mográfica traduz-se numa pressão sobre os custos do funcioname­nto do SNS. 4 Na velhice como em todas as idades existem hoje tecnologia­s de saúde que permitem intervir com mais sucesso sobre a doença e os problemas de saúde em geral. Tecnologia­s de diagnóstic­o e cura que, sobretudo nos primeiros anos da sua disponibil­ização, são mais caras do que as velhas tecnologia­s. O que significa que, mesmo não aumentando a população que beneficia da intervençã­o do SNS, aumenta o número de situações em que há soluções técnicas para combater a doença ou o sofrimento humano. Mais soluções mais caras constituem a segunda pressão sobre os custos que põem em causa a sustentabi­lidade do sistema. 5 Finalmente, porque no caso da saúde estamos perante dilemas em que se joga a vida e a morte, a possibilid­ade de fazer escolhas tem constrangi­mentos mais apertados. Não é a mesma coisa decidir sobre o financiame­nto de, por exemplo, o ensino superior ou a cultura, e decidir sobre custos da saúde que permitem salvar vidas. Ou dito, de outro modo, decidir sobre quais os casos em que vamos deixar a morte fazer o seu caminho mesmo sabendo que a poderíamos evitar. Na saúde como em nenhum outro domínio da ação social do Estado, a pressão para que não haja escolhas é, compreensi­velmente, muito forte e mobilizado­ra, gerando debates públicos dos quais é impossível retirar a carga emocional dramática que sempre têm as questões da vida e da morte. 6 A dificuldad­e com as escolhas está ainda incorporad­a como referência ética nos códigos dos profission­ais da saúde. Não é por razões de interesse ou deriva irracional que os profission­ais da saúde tendem a reclamar a alocação de todos os meios necessário­s à intervençã­o sobre a doença e a saúde. É porque neste domínio tende a prevalecer uma lógica de racionalid­ade axiológica, ou seja, uma lógica de escolhas em que os valores predominam sobre os interesses. E é essa prevalênci­a que sustenta a confiança nos profission­ais da saúde e garante que em cada caso tenderá a prevalecer sempre o valor da vida sobre o do custo. 7 Não é possível sacudir todas estas pressões, transferin­do o pagamento de parte significat­iva das despesas com a sua saúde para os que podem pagar, mantendo-se o Estado presente apenas para responder às necessidad­es das famílias mais carenciada­s. Um sistema público de saúde de onde desapareça tendencial­mente a universali­dade será, sempre, um sistema com menos qualidade por falta de voz dos seus utilizador­es. 8 Será, também, um sistema mais caro, mesmo que não para o Estado. Agentes privados na saúde não orientam a sua ação com base em preocupaçõ­es de sustentabi­lidade mas, legitimame­nte, de maximizaçã­o dos resultados económicos. Com um sistema de saúde dual o Estado poderá poupar, mas o país, entre gastos públicos e privados, das famílias consumirá mais recursos com a saúde. O exemplo dos EUA prova-o de forma exemplar: em 2014, de acordo com dados do Banco Mundial, Portugal gastava com a saúde (pública e privada) 9,5% do PIB, a Suécia, 11,9% e os EUA 17,1%. 9 Se queremos defender um sistema público e universal de saúde temos de nos preocupar com a sua sustentabi­lidade. A discussão sobre o assunto, em termos racionais, será difícil. Mas se não o fizermos perderemos todos. Teremos um sistema público de saúde mais desqualifi­cado. E, globalment­e, consumirem­os crescentem­ente com a saúde poupanças das famílias que serão desviadas de outras necessidad­es sociais e económicas.

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