25 DE ABRIL
NAS COMEMORAÇÕES, LIBERDADE SIGNIFICOU DIVERSIDADE
e meia da tarde. Lá mais para baixo, a meio da Avenida, os institucionais – sindicatos, juventudes partidárias, associações profissionais – já desfilam de bandeiras hasteadas, slogans proclamados em uníssono e carros de som a debitar os clássicos da jukebox de Abril. Em cima, nas imediações do Marquês, acontece o outro 25 de Abril: um mosaico de gente e de causas, completamente distintos entre si, mas com o desígnio comum de exercer aquilo que a Revolução dos Cravos lhes deu: a liberdade.
Em volta da rotunda, onde uma mãe aproveita a ausência de automóveis para ensinar o filho mais pequeno a andar de bicicleta, distribuem-se pequenos grupos. Há os anárquicos, com o preto a dominar a cor do vestuário, e o orgulho LGBT, com a famosa bandeira das cores do arco-íris. Há cantadeiras tradicionais alentejanas, grupos de samba e tocadores de bombo. Há adultos novos a exigir uma habitação digna e estudantes do Liceu Camões, de capacete de obra na cabeça, a reclamar a reabilitação prometida há muito para a sua escola. E há defensores dos direitos dos animais, ambientalistas e feministas denunciando o assédio no local de trabalho, trabalhadores imigrantes, pacifistas e militares de Abril...
Sentados no relvado e de costas contra o muro, César Augusto e Hélder Gomes, dois comunistas septuagenários, fazem uma pausa da “militância política” que os levou até à Avenida. Estão de acordo: ainda falta “bastante” até que o ideal de Abril seja uma realidade. Pelo menos o ideal em que acreditam. Mas também nenhum duvida de que estamos “um bocadinho” melhor do que antes da Revolução de 1974.
“Quem passou as passas do Algarve no Estado Novo sabe bem o que mudou”, garante César, 76 anos, 36 meses de comissões de serviço na Guerra Colonial no currículo. “Estive em Moçambique, Angola e Guiné”, conta. “Ele é conhecido por toda a gente por Im- perador”, revela Hélder. Mas para mim é uma múmia”, brinca. “Sou muito mais novo: três anos.”
Hélder tem muitas críticas a fazer à realidade atual do país. Mas considera que o facto de as poder fazer livremente é a prova definitiva de que vivemos num país muito melhor: “Graças ao 25 de Abril estamos aqui a falar hoje. Há 45 anos, você, jornalista, não podia vir à rua para me fazer as perguntas que está a fazer.”
Ana Maria, 81 anos, trabalhou onze como enfermeira no Hospital do Ultramar, durante o Estado Novo, e lembra o sistema que vigorava na unidade de saúde, em que o serviço, dirigido a trabalhadores do Estado na metrópole e nas colónias, dividia os utentes “por classes profissionais e sociais. Havia a primeira, segunda e terceira classes”, conta. “De primeira eram os licenciados, os membros da elite da Igreja, os ministros. Lembro-me de que a certa altura estava lá internado o ministro [da Economia] Correia de Oliveira. O Salazar ia lá visitá-lo à noite, por volta das dez horas.”
Samuel, 18 anos, bandeira LGBT orgulhosamente sobre as costas, nasceu um quarto de século depois da Revolução. Mas sabe bem o “muito esforço” que esteve envolvido na conquista da liberdade. E o que esta representa. Desde logo, diz, “cada um poder afirmar-se como é, sem estar dependente de alTrês
guém, sem reprimir alguém, só porque o Estado nos diz que temos de o fazer”.
“O 25 de Abril representa a liberdade. Toda a gente sabe que representa a liberdade”, resume Carlos Cunha, 55 anos, deficiente motor, sentado numa cadeira de rodas e com uma bola de basquetebol na mão. “Eu faço parte de da Associação Portuguesa de Deficientes (APD), estamos aqui em conjunto, uma equipa de andebol e basquetebol, e vamos desfilar pela Avenida para mostrar o nosso desporto adaptado, o que somos capazes de fazer apesar das limitações que temos.” Varoufakis presente, Lula lembrado Os estrangeiros também marcam presença, reforçando o colorido da marcha. O mais mediático é sem dúvida Yanis Varoufakis, antigo ministro das Finanças grego, mas há desde bandeiras da Palestina à da Catalunha e até uma dupla de palhaços vestida a rigor: o britânico Gordon Fudge e a norteamericana Tasha Tambeau: “Nós somos palhaços humanitários. Acreditamos que as pessoas devem ser boas umas para as outras. E parece haver aqui muita gente que quer o mesmo”, explica Gordon, que vive em Portugal. “É isso que incorpora o espírito da Revolução dos Cravos: pessoas a serem boas umas para as outras. E que maneira de o fazerem, com flores e sem violência, que está a ser usada por muita gente neste momento noutros pontos do mundo.”
Entre os brasileiros, como sempre um dos grupos mais animados, pede-se a libertação de Lula da Silva, lembra-se o assassínio recente da deputada federal Marielle Franco e canta-se: “Em Portugal e no Brasil, sempre em defesa dos valores de Abril.” Mariana Marques, em Portugal desde setembro, explica que muitos dos seus conterrâneos começam a temer pelo futuro da liberdade que o Brasil também conquistou: “A situação está ficando cada vez mais complicada. Não estão respeitando a democracia. O Brasil tem de resistir, tem de lutar. E a gente está aqui para mostrar, em Portugal, que os brasileiros que estão aqui também não são todos brasileiros que apoiaram a saída da Dilma [Rousseff]”. Tomar a palavra no jardim de Soares Mário Soares, desaparecido em janeiro do ano passado, também foi evocado nas celebrações de uma revolução da qual continua a ser um dos maiores símbolos. O Jardim do Campo Grande passou desde ontem a ostentar o nome do antigo primeiro-ministro e Presidente da República, numa cerimónia em que marcaram presença Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e Eduardo Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República.
O jardim inclui uma estrutura em que é contada a história do antigo Chefe do Estado e uma citação do livro Portugal Amordaçado. Foi ainda montado no local um pequeno púlpito para que os cidadãos possam tomar a palavra, “a grande arma” de Soares, disse Marcelo.