Um encontro com Ingmar Bergman A Meio da Noite
Olga Roriz estreia criação no Festival DDD – Dias da Dança, que começa hoje e ocupa Porto, Matosinhos e Gaia até 13 de maio
A certa altura, a meio do processo criativo de A Meio da Noite, depois de ter (re)visto mais de 50 filmes e de ter lido vários livros sobre Ingmar Bergman, a coreógrafa Olga Roriz viajou até à ilha de Farö, na Suécia, para onde o cineasta se mudou em 1966-67, onde viveu e morreu, em 2007, e onde se encontra sepultado. “Foi muito importante estar ali, naquele sítio. Parece que estamos dentro dos filmes e vemos as sombras daquelas personagens”, conta Roriz, que esteve na ilha em outubro do ano passado acompanhada do realizador João Rapozo, que faz o vídeo que aparece no espetáculo.
Bergman apaixonou-se pela ilha quando estava a procurar sítios para rodar Em Busca da Verdade. Fez lá vários filmes, incluindo A Paixão de Ana , a série Cenas de Um Casamento e dois documentários sobre a ilha. Era o dono do único cinema de Farö. Para Olga Roriz esta foi uma experiência importantíssima: “Estar nas paisagens dos filmes, na praia onde foi filmado o Persona, na casa onde foi feito o Vergonha e, depois, para finalizar, limpar as folhas secas da campa de Bergman. Foi muito forte. Essa sensação eu não consigo trazer para o espetáculo.”
Talvez não. Mas A Meio da Noite, que se estreia no festival DDD – Dias da Dança, no Porto, e depois irá em digressão pelo país, com passagem pelo Teatro Camões, em Lisboa, em outubro, é um espetáculo que tem Bergman do princípio ao fim. A ideia surgiu a propósito das comemorações dos 50 anos do filme A Hora do Lobo (1968), aquela hora em que morrem mais pessoas e em que nascem mais bebés e em que tudo é possível. Mas Olga Roriz não se quis ficar por esse filme e foi buscar inspiração a todo o Bergman – vida e obra. Porque, explica, há “uma impressão de Bergman em todas as suas personagens”: “O autor é indissociável da sua obra. Ele traz toda a sua vida privada, a família, os irmãos, os amores, as separações, as doenças, todas as suas vivências, os demónios, os medos, o medo da morte que ele tinha, traz tudo isso para os filmes e não o esconde.” Portanto, falar dos filmes é também falar do homem.
“O Bergman foi um autor que passou por mim, como passou por muita gente, aos 20 e tal anos. Lembro-me perfeitamente de ter visto o Persona e não ter percebido nada.Vi os outros filmes e achava as mulheres muito bonitas”, conta a coreógrafa. O verdadeiro fascínio surgiu mais tarde, já com a série Fanny e Alexander (1982). A partir daí foi acumulando material sobre o dramaturgo, encenador e cineasta que agora, finalmente, pôde usar.
“Claro que os filmes dele são a minha base para este espetáculo, mas não queria que fosse só isso. A ideia era juntar os bailarinos à volta de uma mesa, onde eles vão pesquisar sobre o Bergman e começar a experimentar cenas para a construção de um espetáculo. Foi isso que nós fizemos de facto e é isso que reproduzimos aqui.” Portanto, em A Meio da Noite estamos sempre entre a mesa e o palco, entre os atores e as personagens, entre Ingmar Bergman e a visão que temos hoje, aqui, dele.
“O que é mais forte na obra de Bergman é a existência humana. A dificuldade que o ser humano tem de se entender a ele próprio, primeiro que tudo. Com o Bergman os outros nunca são entendidos. Cada pessoa fica sempre só com aquele conflito interno”, diz Olga Roriz.
E, depois, há “aqueles atores todos maravilhosos” e a maneira como ele os filma. “Não há nada mais bonito do que a Liv Ulman a olhar para o Bergman”, diz-se em A Meio da Noite. E no palco evocam-se esses “monólogos intermináveis que aqueles atores têm para a câmara, portanto, para si próprios. Porque eles não estão a falar connosco”, explica Olga Roriz, que também trabalha o grande plano, com as caras dos bailarinos projetadas num telão ao fundo, durante grande parte do espetáculo.
Naquelas duas horas, é possível reconhecer muitas personagens de Bergman e referências a cenas dos filmes, mas Olga Roriz não quer que isso torne o espetáculo hermético. “Não é preciso ter visto os filmes para perceber”, garante. “Há coisas universais.”
No início dos anos 1990, Bergman esteve com a sua companhia em Lisboa para apresentar, no Teatro Nacional D. Maria II, integrado no Festival Internacional de Teatro, o espetáculo A Marquesa de Sade. Olga Roriz foi com a filha Sara, ainda muito pequena. “Estava toda a gente na sala com auscultadores porque havia tradução simultânea. E eu disse à Sara: ‘E se não usássemos os auscultadores? Eu já te contei a história, vamos só ouvir estes atores fantásticos a falar.’ E foi uma experiência maravilhosa.” E é um pouco dessa experiência que tenta reproduzir aqui. Os atores tiveram aulas com uma professora sueca e dizem algumas frases naquela língua que, para quase todos no público, será incompreensível. Não interessa o que dizem. É como música. Como mergulhar num filme de Ingmar Bergman.