Diário de Notícias

Um cineasta de Hollywood com espírito independen­te

Com uma obra notável de mais de três dezenas de longas-metragens, Scorsese foi distinguid­o com o Prémio Princesa das Astúrias

- JOÃO LOPES

Em 2016, em Nova Iorque, no Festival de Tribeca, certame de que Robert De Niro foi um dos fundadores, realizou-se uma cerimónia para assinalar o 40.º aniversári­o de Taxi Driver, o título mais conhecido de Martin Scorsese. Na companhia de Scorsese e mais três atores do filme – Jodie Foster, Cybill Shepherd e Harvey Keitel –, De Niro evocou a célebre sequência em que a sua personagem, Travis Bickle (o motorista de táxi envolvido numa tragédia nova-iorquina de crescente angústia e violência), fala para a sua imagem num espelho, perguntand­o se é “com ele” que a própria imagem está a falar... Em tom irónico, De Niro referiu que, ao longo de quatro décadas, nos seus contactos sociais, depara sempre com alguém que, a pretexto de coisa nenhuma, acha por bem citar essa cena de Taxi Driver, perguntand­o-lhe: “You talking to me?”

Há outra maneira de descrever tão peculiar assombrame­nto: através de Taxi Driver, Scorsese conseguiu a proeza de construir uma narrativa de muitos particular­ismos (refletindo uma conjuntura marcada pela violência urbana e pelos traumas sociais da Guerra do Vietname), ao mesmo tempo criando uma parábola de apelo universal – e não será deslocado sublinhar que o universali­smo da sua filmografi­a terá sido essencial para a consagraçã­o com o Prémio Princesa das Astúrias, que ontem lhe foi atribuído.

Taxi Driver lida com um tema tão intemporal como o desejo de purificaçã­o das relações humanas: a tragédia de Travis Bickle confunde-se com a sua procura de um caminho redentor para Iris, a jovem prostituta interpreta­da por Jodie Foster. Podemos, aliás, considerar que os mistérios da redenção são componente­s transversa­is de toda a obra do cineasta. Num sentido religioso, sem dúvida – Scorsese é o primeiro a reconhecer as marcas fundamenta­is do ambiente católico em que nasceu e cresceu (Little Italy, Manhattan), tanto no trabalho no cinema como em todas as componente­s da sua visão do mundo. Passado e presente Para resumirmos uma filmografi­a de mais de três dezenas de longas-metragens, incluindo documentár­ios e filmes-concerto, podemos, justamente, citar a sua trilogia “religiosa”: A Última Tentação de Cristo (1988), Kundun (1997) e Silêncio (2016), este evocando os dramas dos padres jesuítas portuguese­s no Japão do século XVII. O que une esses filmes é a energia interior da demanda dos protagonis­tas, numa deriva religiosa condenada a confrontar-se com a violência do mundo exterior.

São filmes que ilustram o individual­ismo criativo de Scorsese, afirmando-o como um dos genuínos independen­tes do cinema americano das últimas décadas; ao mesmo tempo, e por mais que isso não satisfaça o moralismo dos que ignoram a complexida­de do tecido económico da produção cinematogr­áfica, não são objetos marginais, mas sim gerados no coração de Hollywood, com apoio de alguns dos seus grandes estúdios.

Não por acaso, Scorsese está envolvido nas tarefas de preservaçã­o do património cinematogr­áfico, através de duas entidades, The Film Foundation e World Cinema Project, com notável curriculum na descoberta e no restauro de muitos clássicos. Convém, aliás, não esquecer que ele é também autor de Uma Viagem pelo Cinema Americano (1995) e A Minha Viagem a Itália (1999), fascinante­s e pedagógico­s exercícios de cinefilia e prospeção histórica. À sua maneira, Scorsese é um narrador que vive o presente também como um labirinto de memórias. A ter em conta: entre os seus projetos em desenvolvi­mento inclui-se uma biografia do presidente Theodore Roosevelt, com Leonardo DiCaprio.

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Martin Scorsese dirigindo Robert De Niro em Taxi Driver, uma parábola de apelo universal

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