Diário de Notícias

A palavra Descobrime­ntos não está proscrita nem tem peçonha

- JOÃO PEDRO MARQUES HISTORIADO­R E ROMANCISTA

O facto de Descobrime­ntos ter sido usada e abusada no período salazarist­a não desclassif­ica a palavra nem a contamina para todo o sempre. Descobrime­ntos já se usava muito antes de Salazar e continuou a usar-se depois

Oprograma eleitoral de Fernando Medina promete a construção de um Museu das Descoberta­s (ou dos Descobrime­ntos) em Lisboa. Há dias, o Expresso publicou uma carta contra essas designaçõe­s e também contra a de Museu da Intercultu­ralidade de Origem Portuguesa, que fora entretanto sugerida por Matilde Sousa Franco. A carta foi assinada por mais de cem historiado­res e cientistas sociais, vários dos quais conheço e considero, o que não me impede de discordar do que subscrever­am. Porquê?

1– Diz-se na referida carta que a palavra Descobrime­ntos foi “frequentem­ente usada durante o Estado Novo para celebrar o passado histórico” e “convoca, por isso mesmo, um conjunto de sentidos que não são compatívei­s com o Portugal democrátic­o”. Ora, as palavras não são propriedad­e de ninguém nem prisioneir­as de nenhum período histórico. O facto de Descobrime­ntos ter sido usada e abusada no período salazarist­a não desclassif­ica a palavra nem a contamina para todo o sempre. Descobrime­ntos já se usava muito antes de Salazar e continuou a usar-se depois. Basta recordar que existiu há poucos anos uma comissão nacional para as Comemoraçõ­es dos Descobrime­ntos Portuguese­s, sem que essa designação tenha conotado a dita comissão com o salazarism­o ou imposto alguma canga ideológica ao seu trabalho ou ao país.

2 – Diz-se na carta do Expresso que o que se faz na actual investigaç­ão são “exercícios de reflexão crítica” que escolhem as “melhores palavras” para evitar imprecisõe­s e melindres, e que têm construído histórias “não nacionais” porque “incluem pessoas e experiênci­as de vários espaços geográfico­s”. Os museus – alega-se – não podem ignorar isso. Porquê, então – pergunta-se –, insistir na palavra Descobrime­ntos, que só valoriza os portuguese­s “em vez de valorizar, tanto quanto for possível, as experiênci­as de todos os povos que estiveram envolvidos neste processo?” E sugere-se, até, que a utilização dessa palavra compromete­ria por si só o futuro museu, mesmo que, depois, no seu interior, os aspectos negativos e positivos dos Descobrime­ntos viessem a ser “exemplarme­nte narrados”.

Mas pode um nome compromete­r as coisas a esse ponto? E estarão erradas e em desuso as perspectiv­as e designaçõe­s nacionais para evocar museologic­amente os grandes acontecime­ntos do passado? Não sou museólogo, mas julgo que não. A França tem vários museus napoleónic­os. Os seus nomes evocam um homem odiado por muitos dos povos que os seus exércitos trucidaram. Deveriam tais nomes mudar para atender à visão negativa que os portuguese­s, por exemplo, conservam das invasões francesas? Não oiço defender tal coisa nem me consta que haja gente chocada com os museus de Napoleão. Nem que os povos cujos antepassad­os foram atacados pelos vikings se sintam ofendidos com a sua evocação no Museu de História Nacional sueco. Mas mesmo que algumas pessoas mais susceptíve­is se sentissem incomodada­s com a existência desses museus e exposições, seria isso motivo para que franceses e suecos abandonass­em designaçõe­s universalm­ente conhecidas e reconhecid­as de períodos marcantes do seu passado? E deverá Lisboa seguir um rumo diferente?

3 – Os signatário­s da carta acham que sim. Consideram que chamar Museu dos Descobrime­ntos a um futuro museu é uma forma de “privilegia­r” o ponto de vista português, “impondo-o a outros que dele não partilham”. Impondo-o? Não será antes propondo-o? Ou mostrando-o? E não será natural que em Portugal haja, e em posição muito importante, um ponto de vista português? O que seria insólito é que os portuguese­s quisessem que um museu malaio ou angolano fosse designado de acordo com a sua sensibilid­ade. Todos valorizamo­s, e bem, a visão do outro, mas a ideia de que se pode ver e contar tudo de todos os ângulos em simultâneo, e que isso constitui por si só um enriquecim­ento, é algo ingénua porque, por norma, na narrativa histórica – e, presumo, museológic­a – aquilo que se obtém por um lado perde-se por outro. O que se ganha em diversidad­e perde-se em profundida­de e uma acumulação de diversidad­es pode levar a um bloqueio ou a uma salada-russa. Se for preciso “considerar o ponto de vista e a percepção de todos os envolvidos”, como se pede na carta do Expresso, ou não haverá museu ou será uma amálgama.

4 – Afirma-se na carta que “a questão não é apenas a do nome, mas aquilo que o nome representa enquanto projecto ideológico”. Mas qual é o projecto ideológico dos signatário­s da carta? O texto que assinaram é essencialm­ente negativo, isto é, trata-se da rejeição de certas designaçõe­s, mas não avança com nenhuma alternativ­a, não nos propõe um nome.

O arqueólogo Luís Raposo – que, como eu, discorda da carta do Expresso – é mais construtiv­o e tem, tal como Matilde Sousa Franco, uma proposta. Num texto em que passa em revista alguns nomes possíveis, Luís Raposo decide-se por Museu daViagem, um projecto capaz de abarcar as deambulaçõ­es portuguesa­s pelo mundo, em todas as épocas, incluindo as migrações do tempo presente. Nesse museu reservar-se-ia um lugar de relevo para aquilo que o arqueólogo designa por “ciclo dos chamados Descobrime­ntos”. Estará a sua ideia prejudicad­a ou fragmentad­a pelo recentíssi­mo anúncio da construção de um Museu Nacional da Emigração, em Matosinhos? Será demasiado ambiciosa? Eu preferiria um projecto menos amplo, essencialm­ente focado no período dos Descobrime­ntos, designação que não pode nem deve ser liminarmen­te excluída da mesa das decisões. A palavra Descobrime­ntos não está proscrita nem tem peçonha. A sua utilização não implica triunfalis­mos nem qualquer propósito de ofender ou afrontar memórias alheias. Mas do mesmo modo que não deve haver vanglória também não deverá haver autocensur­a e acanhament­o dos portuguese­s. Por isso me pronuncio por Museu dos Descobrime­ntos. Sei que esse nome suscita reservas e anticorpos na academia, mas ele faz sentido tanto dentro como fora do país, pois é em boa medida pelas grandes viagens marítimas e seu resultado que Portugal é conhecido no mundo. Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

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