Em homenagem a Mário Domingues
Vasculhei o Google num titânico ato de pesquisa sobre o que há escrito e publicado sobre Mário Domingues (1899-1977). Muito pouco existe sobre este jornalista e escritor nascido na ilha do Príncipe no final do século XIX – filho de um colono e de uma angolana levada para São Tomé para executar trabalho forçado numa roça de cacau. Quis, por curiosidade, ir ao encontro de fontes bem informadas para melhor conhecer este anarquista que ganha a minha admiração por ter sido, na década de 1920, um dos primeiros a erguer voz favorável à independência das colónias portuguesas em África.
Foi assim que procurei pelo sociólogo José Luís Garcia, mais bem posicionado para falar daquele mestiço, fruto da colonização – educado em Portugal segundo os padrões da classe média de então –, mas que viria a ser um defensor dos direitos humanos por influência do que lia sobre o movimento de libertação dos negros nos Estados Unidos da América. O académico do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, que há mais de 20 anos estuda a sua obra, disserta com propriedade sobre Mário Domingues, reconhecendo-lhe a ousadia – que lhe custou cara –, também por ter denunciado nos seus escritos as barbaridades cometidas pelo império colonial português nas então longínquas terras de Angola e São Tomé e Príncipe.
Apesar de ter sido um escritor notável e jornalista de grande mérito, viria a ficar no esquecimento nos anos 1970, vítima também da antipatia dos seus conterrâneos como acontecera com Mozart. “É alguém, da condição negra, que merece ser recordado pelas suas posições corajosas e visionárias [assumidas] no princípio da sua vida”, tal evoca o sociólogo.
Naquela tarde, enquanto ouvia a descrição do meu interlocutor, ocorreu-me escrever sobre Mário Domingues a pretexto da Década dos Afrodescendentes (2015-2024), proclamada pelas Nações Unidas, cuja celebração conta com a adesão oficial de Portugal mas sobre a qual pouco se faz e/ou pouco se sabe. Do que estará Portugal à espera para lançar oficialmente o compromisso assumido com a década? Questionam as associações de afrodescendentes que têm incentivado o debate sobre a matéria.
Lamentam que o governo português ainda não tenha “um plano de ação em reconhecimento da respetiva comunidade”, nomeadamente “da população negra que é discriminada”. Reclamam o facto de Portugal ainda não ter lançado oficialmente a década e “de não haver medidas concretas de ação afirmativa”, que passariam necessariamente por uma maior visibilidade através dos media. Criticam o facto de os afrodescendentes serem apenas referenciados nos noticiários “quando cometem crimes ou quando jogam bem à bola”.
Portugal é um país sem segregação racial, diga-se em abono da verdade. Mas José Luís Garcia acaba por questionar por que razão, mais de 40 anos após o 25 de Abril e as independências, “ainda é muito diminuta a presença de africanos nos meios de comunicação social ou a lecionar nas universidades portuguesas”.
Existisse Mário Domingues ainda em vida, acredito que estas seriam lutas que ele abraçaria com militância. Por ter sido quem foi, até ousaria eu propor-lhe uma estátua ou atribuir o seu nome a uma rua de Lisboa. Porque não?
Na toponímia da multicultural cidade de Lisboa, Eusébio – que defendeu com garras o nome de Portugal – é uma das raras exceções a dar nome a uma avenida. E, sem complexos, porque não mais ruas com nomes de africanos distintos, além de Amílcar Cabral, que se bateram pela africanidade e pela independência das antigas colónias?
Recentemente na Alemanha, as autoridades de Berlim decidiram, depois de várias discussões, atribuir a três ruas de um bairro o nome de heróis africanos da resistência que lutaram contra o colonialismo. A capital alemã em nada perde com este reconhecimento ao ter decidido mudar os nomes de Lüderitzstrasse, Nachtigallplatz e Petersalle.
A Rua Lüderitz passará a chamarse Cornelius Frederiks, um líder da resistência do povo Nama, na antiga colónia alemã, hoje Namíbia. A Praça Nachtigall ganhará o nome de BellPlatz, em memória de Rudolf Doula Manga Bell, rei da região que é hoje Camarões, o qual também se revoltou contra a colonização. Por sua vez, a Avenida de Peters será atribuída a dois nomes, nomeadamente a Anna Mungunda, membro dos Herero e primeira mulher da Namíbia a apoiar a independência, e a Maji Maji, que lutou contra o domínio alemão na atual Tanzânia.
A propósito destas temáticas, foi elucidativo ouvir há dias o professor Eduardo Costa Dias dissertar sobre a imperiosidade da descolonização do pensamento, numa reflexão promovida pelo Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. O atual contexto e os novos ventos de mudança exigem que assim seja.
Muito pouco existe sobre este jornalista e escritor nascido na ilha do Príncipe no final do século XIX – filho de um colono e de uma angolana levada para São Tomé para executar trabalho forçado numa roça de cacau