Diário de Notícias

Espanha na rua contra a Manada: “Não é abuso, é violação”

Protestos. Cinco jovens foram condenados a nove anos de prisão por abuso, não por agressão sexual. Um juiz queria a absolvição já que nos vídeos a vítima tinha uma expressão “relaxada”

- SUSANA SALVADOR

Ela disse em tribunal que ficou em choque, fechou os olhos, ficou calada e esperou que acabasse. Eles, os cinco membros da Manada (como se autointitu­lavam no WhatsApp), disseram que foi sexo consentido. Os juízes concluíram que não houve violação ou agressão sexual, mas apenas abuso sexual, e condenaram a nove anos de prisão cada um, quando a acusação pedia mais de 20. Uma sentença que não foi unânime entre os três magistrado­s. Um deles defendia a absolvição, alegando que, nos vídeos que eles gravaram com o telemóvel, a expressão do rosto da vítima era “relaxada e descontraí­da” e, por isso, “incompatív­el com qualquer sentimento de medo, rejeição ou recusa” e que “os seus gestos e sons sugerem prazer”.

A sentença gerou indignação e levou milhares de pessoas às ruas em diferentes cidades espanholas sob os lemas “não é abuso, é violação”, “não é não” e “eu acredito em ti”. Palavras de ordem transforma­das em hashtags nas redes sociais, entre as mais usadas no Twitter a nível mundial, havendo quem questione que mulher se atreverá agora a denunciar este tipo de violência.

Os políticos criticaram a sentença – à esquerda de forma mais contundent­e, à direita mais discreta. “Ela disse não. Acreditámo­s em ti e continuamo­s a acreditar. Se o que fez a Manada não foi violência em grupo contra uma mulher indefesa, o que entendemos então por violação?”, escreveu o líder socialista Pedro Sánchez no Twitter. “Como cargo público respeitare­i sempre e acatarei as sentenças judiciais, mesmo que não goste. Mas reconheço que como cidadão e como pai me custa assumir a sentença da Manada. Todo o meu apoio à vítima e à sua família”, disse Albert Rivera, líder do Ciudadanos, na mesma rede social. Há quem defenda que se a lei foi cumprida, se deve mudar a lei.

Os factos ocorreram na madrugada de 7 de julho de 2016, durante as Festas de San Fermín, em Pamplona. Ela, estudante de 18 anos de Madrid, tinha viajado com um amigo, que a meio da noite foi dormir para o carro. Ela, que tinha estado a beber, ficou com um grupo que tinha acabado de conhecer, mas perdeu-se deles. Sentou-se num banco e foi aí que um dos cinco arguidos – todos sevilhanos, na casa dos 20 anos – meteu conversa, enquanto os outros iam rondando. Quando resolveu ir ter com o amigo ao carro, eles ofereceram-se para ir com ela.

Pelo caminho, eles tentaram arranjar um quarto de hotel, sem que ela se apercebess­e, e um deles começou a beijá-la, sem que ela oferecesse resistênci­a. Acabaria por ser levada para o vão da escada de um prédio, onde eles a sujeitaram a sexo oral, vaginal e anal, filmando no total 96 segundos dos atos com telemóvel. Antes de a deixarem, um deles roubou-lhe o telemóvel. Sozinha, vestiu-se e saiu para a rua em lágrimas, apercebend­o-se de que não tinha forma de contactar o amigo. Sentou-se a chorar num banco, onde um casal a abordou e pouco depois a polícia, que tomou conta do caso. Os arguidos – entre eles um militar e um guarda civil – foram detidos pela manhã e dois dias depois ficaram em prisão preventiva a aguardar o julgamento, que acabou ontem no tribunal de Navarra.

Os cinco foram condenados por crime continuado de abuso sexual, acreditand­o os juízes que houve “uma situação de manifesta superiorid­ade que coage a liberdade da vítima”, mas absolvidos do de agressão sexual. Tanto este crime como o de abuso sexual referem-se a atos que atentam “contra a liberdade sexual de outra pessoa”. Contudo, no primeiro existe “violência ou intimidaçã­o”, e no segundo estes aspetos não estão presentes, mesmo não havendo consentime­nto – incluindo quando as vítimas tenham consumido fármacos, drogas ou outra substância que anule a sua vontade. Como houve penetração, as penas para o segundo crime vão de quatro a dez anos de prisão.

Os juízes optaram por condenar os arguidos – que como a vítima não estiveram em tribunal – a nove anos e ao pagamento de uma indemnizaç­ão de 50 mil euros. O que furtou o telemóvel – a acusação disse que era para a impedir de pedir ajuda, enquanto a defesa alegou que o fez por “ganância” – é condenado a mais dois meses. Todos vão recorrer da sentença e a Espanha promete continuar na rua.

Há quem questione que mulher se atreverá agora a denunciar este tipo de violência e há quem defenda mudanças na lei

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Manifestaç­ões em Madrid e por toda a Espanha contra a sentença com palavras de ordem como “não é não” ou “eu acredito em ti”

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