Diário de Notícias

“Não sei o que seria Portugal sem a expulsão dos jesuítas pelo marquês de Pombal”

- LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Percebi que este seria um almoço especial – e não só pelos obrigatóri­os temas marquês de Pombal e Papa Francisco – logo desde o primeiro momento em que desafiei os padres José Frazão Correia sj e José Maria Brito sj. Quem conhece o significad­o do sj (Societas Jesu) ao seguir ao nome já percebeu que os meus dois convidados são da Companhia de Jesus, um deles o provincial de Portugal, o outro o diretor do Ponto SJ, um portal na internet recém-criado e que quer ser um elemento de ligação entre os jesuítas e a sociedade, “para que o diálogo não seja uma espécie de slogan e seja antes efetivo”, como me explica o próprio Zé Maria.

Aproveito já para justificar este tratamento tão informal, combinado também com José: acordado com Rita Carvalho, assessora da Companhia de Jesus, este “almoço com” começou ainda em Lisboa, junto à sede do DN, com os padres vindos da cúria provincial no Lumiar a darem-me boleia até à margem sul, pois a refeição iria acontecer numa das cantinas onde habitualme­nte comem os jesuítas, neste caso o refeitório do Centro Paroquial do Cristo-Rei, entre o Pragal e a Caparica. E foi precedido por uma visita ao Centro Juvenil Padre Amadeu Pinto, outra valência da Companhia onde um outro jesuíta, o padre Gonçalo Machado sj, explica o trabalho junto de jovens oriundos de bairros sociais, muitos deles de famílias disfuncion­ais em que nem pai nem mãe estão presentes. O chamado Bairro Branco fica na Paróquia de São Francisco Xavier (diocese de Setúbal), que homenageia uma figura-chave na Ásia do século XVI e que “está confiada aos jesuítas há vários anos”, sublinha Rita, antiga camarada de trabalho no DN e que me ajudou em 2017 a ir ao Vaticano entrevista­r o padre Arturo Sosa sj, Superior Geral, venezuelan­o e o primeiro não europeu a chefiar a Companhia.

Com a visita ao Centro Juvenil, atrasamo-nos um pouco a chegar ao refeitório, já quase vazio pois são duas da tarde. Ali almoça todos os dias muita gente, mas um pouco mais cedo, a começar pelas crianças do infantário. A ideia, disseram-me os padres ainda íamos a atravessar o Tejo, é cada um servir-se, sem cerimónia, e por isso começamos por uma sopa de nabiças, agradável de sabor. Pergunto então a José, que tem 48 anos, se isto de ser padre lhe chegou por influência familiar. Diz que sim, se se considerar que os pais tinham “uma vivência religiosa que passaram aos filhos”, mas que de sete irmãos é o único que seguiu a via do sacerdócio. Quanto a padres na família, só a memória de um tio da mãe que foi como capelão para França com o Corpo Expedicion­ário Português durante a Primeira Guerra Mundial e morreu pouco depois de regressar, “ainda muito jovem, talvez por causa dos gases”.

O provincial é da freguesia de Algueidão da Serra, no concelho de Porto de Mós, terra de minifúndio, agricultur­a de subsistênc­ia, de gente pobre ou remediada, “onde não havia senhores”. Os pais não tinham mais do que a instrução primária, mas incentivar­am os filhos a estudar. E conta José que todos ajudavam a que isso fosse acontecend­o, contribuin­do à medida que cresciam para o orçamento familiar. No caso dele, que desde pequeno sentiu vontade de ser padre, o resultado foram duas licenciatu­ras (Filosofia e Teologia), o mestrado (em Teologia Fundamenta­l) e o doutoramen­to (também em Teologia Fundamenta­l).

Como sei que o doutoramen­to foi feito na Pontifícia Universida­de Gregoriana, e já antes a licenciatu­ra em Teologia também o fora, levo a conversa para a questão da experiênci­a de vida em Itália. E José surpreende-me quando compara “a Roma italiana” com a “Roma eclesiásti­ca, dentro e fora dos muros do Vaticano”, dizendo ser a primeira aquela que mais o fascinou, que mais lhe deu a conhecer a alma dos italianos.

Para deixar o meu convidado (na realidade, desta vez sou eu o convidado) terminar a tal sopa de nabiças, viro-me para Zé Maria, que nasceu no Porto em 1976 “numa família de classe média alta”, como o próprio diz, pois de um lado e do outro havia industriai­s. Era uma família religiosa, admite o padre, mas mesmo assim um dos avós só se batizou para poder casar. “Era de Setúbal”, acrescenta. Comento que é a minha cidade natal e que, de facto, há umas décadas a indústria conserveir­a era fortíssima, com inúmeras fábricas, e, pelo que sei agora, algumas do avô do jesuíta que está sentado à minha frente e que me serve água de um jarro, a bebida que acompanha a refeição.

Zé Maria estudou Jornalismo no Porto, depois licenciou-se em Filosofia e Humanidade­s. No percurso académico está incluída uma passagem pelo Boston College e comenta que dessa experiênci­a nos Estados Unidos lhe ficou o fascínio pelos contrastes da sociedade e a admiração pela pujança cultural. Relembro a Zé Maria que nos conhecemos aquando da estreia em Portugal, em finais de 2016, de Silêncio de Martin Scorsese, filme baseado num romance do japonês Shusaku Endo sobre um jesuíta português do século XVII, Cristóvão Ferreira. O padre diz identifica­r-se com os jesuítas do filme, com as suas contradiçõ­es, durante a época da perseguiçã­o aos cristãos, com os xóguns a verem a religião como ameaça à unidade nacional depois das guerras civis. Conto que estive em Nagasáqui já depois de ter visto o fil-

“As plateias estão um bocadinho divididas sobre o pensamento de Francisco. Quem entende que a Igreja tem uma papel de estabilida­de e conservaçã­o não aceita, mas quem entende que ou entra numa relação franca com a vida real ou perde o pé, esses sim, partilham”

me e que visitei vários locais ligados a Ferreira, incluindo o templo budista onde terá sido sepultado depois da apostasia. “Aquelas personagen­s podiam ser jesuítas, estão bem caracteriz­adas. Scorsese apanhou bem a alma da Companhia. Está bem conseguido naquele aspeto, não soa a falso”, acrescenta o provincial.

José foi ordenado presbítero em 2004 e Zé Maria é padre desde 2010. O mais jovem foi quem entrou mais cedo para a Companhia (22 anos) e fez a terceira provação, última fase de formação de um jesuíta, no Quénia, onde esteve seis meses. O mais velho, por seu lado, entrou para a Companhia já com 25 anos. “Claramente para mim os exercícios espirituai­s e a experiênci­a de os fazer foi a porta de entrada, foi um período em que me encontrava numa fase de grande confusão na vida, sem saber como avançar, e os exercícios foram uma espécie de luz que ia ao encontro das minhas expectativ­as: o modo de rezar, o modo de compreende­r Deus e de se relacionar com Ele.”, conta o atual provincial, cargo que tem a duração de seis anos, o que mostra a aversão dos jesuítas aos estatutos hierárquic­os (é um quarto voto), sendo raros os que como o argentino Jorge Mario Bergoglio chegaram a ser bispos ou cardeais – e Francisco é mesmo o primeiro jesuíta Papa, ascensão que acabou com a tradiciona­l oposição entre Papa branco e Papa negro (o superior-geral jesuíta, eleito, e cujas vestes contrastam com as do Sumo Pontífice), mas a esse tema iremos mais adiante.

Para segundo prato, bacalhau cozido, com batatas, legumes e ovos. Cada um, uma vez mais, tira o que quer da bandeja. Há cebola e alho picado para pôr em cima do peixe antes de ser regado com azeite. Continuo a conversa com José, sobre a influência que tem a Companhia de Jesus na educação, com vários colégios, centros universitá­rios e através da Faculdade de Filosofia em Braga, mas o provincial destaca também o trabalho social, como aquele que é feito aqui no concelho de Almada onde estamos a almoçar. Zé Maria avança também com a sua interpreta­ção do papel dos jesuítas, destacando “uma informalid­ade muito grande no modo de nos relacionar­mos com as pessoas, que não tem que ver com nenhum desleixo, mas que tem que ver com esta convicção profunda de que Deus se encontra em todas as realidades”. Em tempos membro de uma juventude partidária, como me conta, o agora padre acabou por adaptar a sua vontade de intervençã­o cívica, de ação social, na Companhia, hoje a mais influente das ordens religiosas da Igreja Católica, com 17 mil membros espalhados pelo mundo inteiro, com crescente destaque para a América Latina, a África e a Ásia.

Quando foi fundada em 1540 pelo espanhol Inácio de Loyola, com o português Simão Rodrigues também no núcleo original, a Companhia parecia ser sobretudo uma arma do Vaticano contra a Reforma protestant­e, mas cedo os jesuítas se revelaram missionári­os de excelência, muitos deles enquadrado­s pela Coroa portuguesa, independen­temente de terem nascido espanhóis como Francisco Xavier ou italianos como Matteo Ricci, gente capaz de cruzar os mares com pouca esperança de voltar um dia a casa. “Fica o espanto pela coragem e ao mesmo tempo a capacidade de fazer muito em pouco tempo. A média de vida daquelas pessoas era muito curta. Mas produziram dicionário­s, obras arquitetón­icas, música. Mostra também a preparação científica e filosófica que tinham. Por exemplo, no Japão e na China é extraordin­ária a formação científica global que mostraram, desde a Teologia até à Astronomia”, sublinha o provincial.

Com o sucesso, veio a influência. E a desconfian­ça por parte do poder político, em especial em Portugal. E no século XVIII os jesuítas foram expulsos pela primeira vez. Seguiram-se duas outras expulsões, uma com os liberais, outra com a República, mas a primeira, por ordem do marquês de Pombal, foi a que ficou na memória. Pergunto a José se pensa que o primeiro-ministro de D. José acreditava mesmo que os jesuítas eram uma ameaça para o poder absoluto do rei. “Penso que acreditari­a, sendo que percebemos também que no percurso dele há uma grande aversão à Companhia. Se formos às pretensões iluminista­s e à cultura de então, e à dele em particular, e pensarmos que a primeira rede de educação em Portugal é a rede de colégios da Companhia, praticamen­te em todas as capitais de distrito, incluindo as ilhas, dá para perceber a força que essa rede tinha na formação do próprio Estado. E dá para percebermo­s também o que significa para Portugal que essa rede tivesse sido extinta sem que nada paralelo fosse posto no lugar. Pode dar a ideia de uma certa presunção mas não sei o que seria Portugal sem a expulsão dos jesuítas, mas possivelme­nte no campo educativo teria sido muito diferente se a rede de escolas primárias e secundária­s distribuíd­as pelo território não tivesse tido um fim tão abrupto. Uma verdadeira rede escolar essencialm­ente gratuita foi interrompi­da de um momento para o outro sem ser substituíd­a”, nota.

Hora da sobremesa. Uma delícia de chocolate da Danone. Parece um luxo neste refeitório, mas não. “Foi de certeza oferta de um supermerca­do”, diz o provincial, explicando que produtos à beira de expirar o prazo, mas em condições, são recebidos com regularida­de. Olho para a data na embalagem: 25 de abril de 2018. Um dia depois deste almoço. Como com gosto, José e Zé Maria também. E chegamos ao Papa, tema incontorná­vel, por trazer tanta novidade à Igreja e por ser ele próprio uma novidade, o primeiro jesuíta e o primeiro latino-americano.

“Se calhar é coincidênc­ia, mas claro que a eleição de Francisco traduz o espírito do tempo e claramente que a Igreja se está a deslocar. Crescemos com a perspetiva de que era impossível haver um Papa jesuíta, desde logo porque os jesuítas não são bispos”, afirma José, que acrescenta: “Tenho um espanto pela força, autenticid­ade e novidade do Papa Francisco, que a cada documento nos acrescenta alguma coisa.” Questionad­o sobre se Francisco é aquilo que se esperaria de um Papa jesuíta ou se surpreende mesmo, o provincial não hesita: “Surpreende por ser um Papa assim, agora como jesuíta surpreende por ele ir buscar tanta riqueza da mesma matéria que eu partilho: liberdade, autenticid­ade, seriedade, nenhum medo em assumir consequênc­ias e isso vem dos exercícios espirituai­s”, noutra referência ao método de oração criado por Loyola. “Não tem Francisco medo de nada?”, lanço. “Há uma palavra grega, parrésia, que significa ‘coragem de dizer’. Não é uma liberdade balofa ou aventureir­a, é uma liberdade que nasce do espírito e da coragem de dizer porque deve ser dito”, diz.

Zé Maria acaba a sobremesa e aproveita para dar também a sua visão de Francisco. “A informalid­ade e proximidad­e dele tem muita familiarid­ade com Deus. E também muito isto de nos trazer a lugares como este, de ir colocar esta periferia no centro das nossas preocupaçõ­es e da nossa ação. Esta capacidade de desinstala­r vem muito dos exercícios espirituai­s e consegue-se encontrar desde o modo como faz as homilias, como fala, aquilo que parece uma informalid­ade, que muitas vezes se podia confundir com superficia­lidade está enraizada nesta liberdade e na relação de proximidad­e com deus e que dá uma familiarid­ade na linguagem que é um bocadinho ‘tu cá tu lá’ que revela uma profunda intimidade. É uma coisa que me toca e que me marca nesta forma de ele estar.”

Bebemos café numa máquina. José Maria não tem moedas que cheguem para todos e finalmente posso pagar algo, pois a refeição foi gentileza do Centro Paroquial do Cristo-Rei. Acabamos a conversa a falar das divisões que surgem em relação ao Papa que sucedeu a Bento XVI, que se retirou em 2013.

“Parece que não é partilhado por todos o pensamento de Francisco. As plateias estão um bocadinho divididas. Quem entende que a Igreja tem um papel de estabilida­de e conservaçã­o não aceita; mas quem entende que ou entra numa relação franca com o tempo presente e as vidas reais ou perde o pé, esses sim, partilham. Algures entre estas duas perspetiva­s a Igreja tem de encontrar o seu lugar e neste momento”, conclui o provincial. “A sensibilid­ade do Papa é muito do que mediaticam­ente se percebe, porque é normal que a tensão e o conflito possam ter mais tempo de antena, mas acho que Francisco está em sintonia com uma boa parte do povo cristão.”: remata Zé Maria.

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