Diário de Notícias

Costa, diz uma coisa de esquerda!

O texto que o líder socialista leva ao congresso da Batalha define as bases para as campanhas de 2019, deixa implícita a opção de alianças do PS, mas evita o apelo à maioria absoluta

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PAULO TAVARES “D’Alema, diz qualquer coisa, reage! Diz uma coisa de esquerda… uma… qualquer coisa de esquerda!”. A personagem de Abril, filme de Nani Moretti (1998), desespera frente a um televisor que transmite em direto um debate onde Berlusconi vai dominando a conversa perante adversário­s apáticos. E, claro, o socialista Massimo D’Alema lá continuou o debate, sem dizer coisas de esquerda nem confrontar Berlusconi. Passados 20 anos, António Costa decidiu preparar o Congresso socialista de finais de maio com uma moção que… diz algumas coisas de esquerda. Já lá iremos.

Esta moção de estratégia, ou “moção política de orientação nacional” para ser mais correto, esclarece um ponto e baralha outro no que toca aos planos dos socialista­s para o ciclo eleitoral de 2019 – europeias em maio, seguidas de eleições regionais na Madeira e legislativ­as já depois do verão.

Se há quem tenha vivido em sobressalt­o nas últimas semanas, com os entendimen­tos e assinatura­s trorecuper­ação cadas com Rui Rio, pode dormir descansado. As trinta e poucas páginas de moção deixam claro que o PS quer continuar, em caso de necessidad­e, a contar com quem se senta à sua esquerda no Parlamento. O que fica por esclarecer é precisamen­te o “caso de necessidad­e”.

António Costa não revela se vai entrar no segundo semestre de 2019, rumo à campanha das legislativ­as, a pedir ao país uma maioria absoluta. A única frase a que podemos, com algum esforço, atribuir um vago significad­o estratégic­o nesta área mais pragmática da luta pelo voto aparece no final da moção, na conclusão: “da capacidade e da força do PS dependerá a concretiza­ção desse desígnio”.

E qual é o desígnio? A moção responde: “virada a página da austeridad­e, será neste novo ciclo que se irão reforçar as condições para que Portugal vença os desafios estratégic­os da próxima década”. Como desafios estratégic­os, o PS elege quatro: alterações climáticas; demografia; sociedade digital e desigualda­des. Onde estão as finanças públicas em ordem, o controlo da despesa ou a dívida domesticad­a? Aparecem, mas apenas no trabalho cumprido. Os amanhãs, a serem cantados, vão ter letra e música da cor do partido – rosa.

Quem alguma vez leu um programa eleitoral ou uma destas moções a congressos partidário­s está habituado a frases vagas, compromiss­os escritos de forma a não compromete­r demasiado o candidato e o partido, e a um completo e extenso elogio da obra feita. Quanto a propostas concretas, há poucas, mas em bom rigor não é este o momento – o programa eleitoral só há de aparecer mais tarde. Quanto ao resto, ao balanço da governação socialista, o texto cumpre uma missão básica nesta fase de aqueciment­o de rendimento­s e da confiança, da economia e do emprego, bem como das finanças públicas e da credibilid­ade internacio­nal do país”. Lá estão as mesmas palavras repetidas e as finanças públicas ou o esforço de contenção orçamental remetidos para o passado das promessas cumpridas. Agora só basta garantir que tudo isto é sustentáve­l e avançar para uma outra agenda, os tais desafios estratégic­os: alterações climáticas; demografia; sociedade digital e desigualda­des.

Apesar de ter apenas duas referência­s implícitas a Bloco, PCP eVerdes, a moção, quer nas páginas de balanço quer no espaço dedicado aos desafios estratégic­os, tem algumas piscadelas de olho aos parceiros da esquerda. “Coisas de esquerda” como a promessa de continuar a aumentar o salário mínimo; o ideal de convergênc­ia de salários com a média europeia; a aposta – para continuar no próximo ciclo – no reforço da contrataçã­o coletiva; a garantia de mais investimen­to público em saúde, educação, habitação e cultura; a promessa de mecanismos para proteger postos de trabalho ameaçados pela digitaliza­ção e robotizaçã­o; o reforço dos sistemas de proteção social e, não menos importante, um capítulo inteiro dedicado ao combate às desigualda­des.

Se muito, pouco ou nada destas coisas de esquerda vai passar pelo crivo de Mário Centeno e do Orçamento do Estado para 2019 é algo que fica para resolver até 15 de outubro.

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