Diário de Notícias

A inspiração voltou e Françoise Hardy edita Personne d’Autre

Só mesmo esta parisiense poderia reabrir, com a elegância e melancolia habituais, uma carreira oficialmen­te encerrada. Personne d’Autre é o título certo para um reencontro emotivo.

- João Gobern

Aos 74 anos, a cantora francesa volta aos discos, depois de lutar contra um cancro e recuperar de uma queda.

Dar de caras com Personne d’Autre – 28.º disco, se forem levadas em conta as edições em França, de uma carreira que nasceu há bem mais de meio século para embalar namorados (“tous les garçons et les filles de mon âge se promènent dans la rue deux par deux”) e que com o tempo passou a comover tantas gerações – vale uma primeira vitória.

Tudo indicava que L’Amour Fou, lançado em 2012 e sendo já o quinto manifesto público da cantora e autora nos anos 2000, estaria condenado a assumir o papel de último testemunho. Basta recordar o que dizia Françoise: “Creio ter chegado ao ponto em que a inspiração não me visita com a frequência indispensá­vel. Teria de acontecer algo de verdadeira­mente inesperado, quase insólito, que me levasse a regressar aos estúdios. E também que houvesse um forte sopro de energia, que me permitisse ultrapassa­r os problemas de saúde que me afligem nestes tempos mais chegados.”

Hardy lutou durante dez anos contra um cancro no sistema linfático, cuja remissão “total” só foi anunciada – pelo filho, Thomas Dutronc, músico, produtor e exímio guitarrist­a – em fevereiro de 2016. Como se não bastasse, uma queda, brutal e caseira, deixou-a quase sem possibilid­ades de andar e obrigou-a um internamen­to prolongado, de quase meio ano, numa clínica especializ­ada. Estamos, afinal, perante um daqueles casos em que a contradiçã­o se saúda, porque Hardy voltou em pleno às gravações, e em que o milagre pessoal tem ótimas conse- quências para o universo dos melómanos.

Françoise Hardy, agora com 74 anos, acabaria por gravar o seu primeiro disco em 1962, benefician­do então de uma ajuda involuntár­ia da política: a 18 de outubro desse ano, a França vai às urnas para referendar a eleição, por sufrágio direto e universal, do presidente da República. Na emissão televisiva, um dos intervalos musicais para amenizar a espera por um veredicto é entregue a Françoise Hardy e a Tous Les Garçons et Les Filles. No dia seguinte, pode falar-se em dois grandes vencedores do serão: Charles De Gaulle e Françoise Hardy, cujo disco chegará – antes do fim do ano – a meio milhão de exemplares vendidos.

No ano seguinte, a brisa do êxito tornou-se vendaval: Françoise foi capa da revista Paris Match, represento­u o Mónaco no Festival da Eurovisão, foi chamada por Roger Vadim para o cinema (Castelo na Suécia valeu como estreia, sendo presença assídua até 1967) e tomou conta do Olympia parisiense, nas suas primeiras grandes apresentaç­ões em palco. Elegância e atenção Daí em diante, a história é (re)conhecida. Depreende-se que Hardy teve tempo, talento e técnica para cantar tudo, incluindo Victor Hugo e Louis Aragon. Entre os seus próximos, francófono­s, vai de Django Reinhardt a Charles Trenet, passando por Georges Brassens, Gilbert Bécaud, Serge Gainsbourg, Georges Moustaki, Jacques Dutronc (o amor da sua vida, de quem está separada, mas não divorciada, desde 1988), Michel Jonasz, Gabriel Yared, Catherine Lara, Etienne Roda-Gil, Michel Fugain, Daniel Gérard, Alain Souchon, Etienne Daho, Arthur H., Calogero, Jean-Louis Murat, Jacques Higelin, Julien Doré ou Benjamin Biolay.

Atenta ao que se passa noutros quadrantes, também gravou – na língua original ou em adaptações para francês – originais de Paul Anka, Burt Bacharach, Leiber & Stoller, Goffin & King, Buddy Holly, Everly Brothers, Tim Hardin, Phil Ochs, Buffy Sainte-Marie, Neil Young, Randy Newman, Ray Davies e Perry Blake, sem esquecer os brasileiro­s Jobim, Chico Buarque e Taiguara, o espanhol José María Caño e o italiano Adriano Celentano. Com tudo isto, é legítimo e rigoroso dizer que Françoise se canta sobretudo a si mesma.

Isso mesmo volta a provar-se em Personne d’Autre, disco de elegância extrema (desde o primeiro momento, em que uma guitarra atmosféric­a resume, de imediato, o ambiente do disco), de uma melancolia aconchegan­te, que Françoise Hardy define como “adequada” para uma mulher da sua idade. As palavras – que a cantora raramente cede a terceiros – falam-nos, com a propriedad­e de quem viveu mas sem a soberba de quem só tem certezas para mostrar, de cumplicida­de, de perda, de sublimação, de envelhecim­ento, da mudança nas alegrias (por oposição aos êxtases), dos entusiasmo­s que não desaparece­m com a maturidade.

Nas doze canções, a “velha senhora” continua a mostrar olho clínico, ao acolher uma canção da moderna La Grande Sophie e ao transforma­r um original do obscuro grupo finlandês Poets Of The Fall. Mas até esses “sinais exteriores” entroncam perfeitame­nte na linha condutora de um álbum em que a voz não perde frescura e ca- pacidade de – sempre sem esforço – nos arrebatar.

Depois, há outra vez a sinceridad­e desta “primeira-dama”, sem nada a perder: ela confessou que parte das canções (como o tema-título ou Train Spécial) correspond­e à sua narrativa do que viveu com Jacques Dutronc. Capaz de continuar a inspirar muitas gerações de vozes femininas da francofoni­a, de Zaz a Pomme, de Olivia Ruiz a Jenifer, de Joyce Jonathan a Louane, Personne d’Autre vale como um arremedo de biografia (e Hardy conseguiu um enorme sucesso com as suas memórias, em Le Desespoir des Singes, livro de 2008) e como um testemunho que pode perdurar. Soa a despedida, é certo. Mas, com Françoise Hardy, nunca se sabe. E fossem todas assim…

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Nos anos 1960, Françoise Hardy ficou quase instantane­amente famosa com Toutes Les Garçons et Les Filles
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Aos 74 anos, Hardy edita o seu 28.º álbum, Personne d’Autre
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Personne d’Autre Ed. Parlophone PVP: 17,99 euros
Françoise Hardy Personne d’Autre Ed. Parlophone PVP: 17,99 euros

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