Diário de Notícias

Ruth, a filha do talhante, jogou no Benfica

- ANA SOUSA DIAS

Cresci com um herói chamado Eusébio da Silva Ferreira. O país não tinha grandes figuras públicas para admirar ou para suscitar a minha devoção, a não ser nomes que não se podia dizer em público. Eusébio era o herói que partilháva­mos e por isso, mais do que lembrar as lágrimas daquele jogo com a Inglaterra em 1966, prefiro falar da euforia do segundo, do terceiro, do quarto e do quinto golos na baliza da Coreia do Norte, aquela vertigem depois de estar a perder por 3-1. Grande Eusébio.

Na próxima semana chega aos cinemas um filme chamado Ruth, o nome de código que serviu para o Benfica roubar Eusébio ao Sporting, numa atribulada história que está contada de uma forma certeira e bem-humorada. Tão bem contada. Quem conheceu Moçambique entre o final dos 50 e o início dos 60, quem viveu em Portugal esses anos em que o poder tremeu a sério, com o desvio do Santa Maria, a Revolta de Beja e o início das guerras coloniais, vai reencontra­r elementos que fizeram parte da vidinha, numa informação que surgia a conta-gotas e a precisar de ser decifrada. Mas o filme foi feito, de facto, por quem, felizmente, não viveu essas coisas.

O argumento foi escrito por Leonor Pinhão, filha do grande jornalista d’ A Bola Carlos Pinhão (que escrevia como se fosse facílimo fazer textos a fluir sem obstáculos e era, já agora, o jornalista mais bonito da cidade), e o filme foi realizado por António Pinhão Botelho, filho da primeira, neto do segundo. Na antestreia, atores e equipa técnica juntaram-se no final para enfrentar os aplausos. Dava para ver que muitos nasceram depois de 1980, gente que cresceu com o próprio António que está a chegar aos 32 anos. Os mais velhos, todos atores consagrado­s, fizeram o mesmo que os outros: participar­am porque não era possível resistir ao convite do realizador que desde criança espreita o mundo do cinema – é filho de João Botelho – e a troco de um pagamento que há de ter sido irrisório (o próprio realizador não terá ganho grande coisa e estava feliz como se fosse Natal).

Enquanto escrevo, recebo alertas dos jornais e vou espreitar no telemóvel notícias e vídeos sobre o encontro dos dois líderes Kim e Moon, e os cruzarem e voltarem a cruzar aquele murete, aquele pequeníssi­mo degrau que há 65 anos é uma linha a separar famílias, vidas, a cortar tudo em dois.

Um dia fui em trabalho à Coreia do Sul e o aeroporto de Seul era – não faço ideia como será agora, mas era assim em 1993 – um cenário de guerra. Uma coisa gelada apesar do calor, onde passavam a correr grupos de militares armados. Nas paredes havia fotografia­s de homens Wanted, façanhudos, presumivel­mente norte-coreanos. Ia num grupo de portuguese­s, a maioria jornalista­s, preparada para responder a perguntas logo que mostrasse os documentos. E eram muitos documentos, aliás. Mas o que recebi foi um sorriso rasgado, como se fosse portadora de uma boa nova. Acontece que nasci em Benfica e isso estava escrito na papelada. Não tenho a certeza do que me foi dito, porque o meu espanto ainda se mantém e a memória gosta de fazer floreados. Mas acho que ouvi a palavra Benfica e logo a seguir Eusébio, e se quisesse mesmo forçar a nota diria que o militar se levantou e me fez continênci­a. Não fez, é evidente, limitou-se a sorrir com admiração e cumplicida­de. Os meus companheir­os de viagem esperavam lá atrás e os militares embirraram em particular com o facto de dois deles parecerem vir do mesmo jornal – o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias, coincidênc­ia que lhes pareceu altamente duvidosa. Eu, que trabalhava no Público, tinha aquele trunfo inesperado dos 5-3 de Portugal à Coreia do Norte.

No dia seguinte, depois de muitas peripécias, tentámos que nos dessem pelo menos chá e pão, no pequeno-almoço do único hotel “ocidentali­zado” da cidade. Bread please, tea please, e os empregados acenavam sorridente­s aquilo que parecia ser um sim. Du pain, s’il vou plaît, du thé s’il vou plaît. Rien, nothing, nada. Por favor, tragam pão, chá! Fomos submergido­s por pão e chá trazidos por todos os empregados. É o que dá falar uma língua que já atravessou muitos mares muito antes de o futebol se tornar a língua universal e Portugal significar Eusébio, Figo, Rui Costa ou Ronaldo.

E agora digo em português: vão ver o filme Ruth, mesmo que sejam do Sporting e achem que aquilo foi um roubo descarado. Mesmo que não gostem de futebol, porque aquela é uma história em que a bola é um pretexto para mostrar os labirintos do poder, o futebol está ali a pairar quase como um cenário virtual. E por favor não digam nunca mais que antigament­e é que era bom.

Sabiam que JoãoVillar­et morreu naquela altura?

Em vez das lágrimas do Portugal-Inglaterra, prefiro a euforia do segundo, do terceiro, do quarto e do quinto golos na baliza da Coreia do Norte Mas o que recebi foi um sorriso rasgado, como se fosse portadora de uma boa nova. Acontece que nasci em Benfica e isso estava escrito na papelada Vão ver o filme Ruth, mesmo que sejam do Sporting e achem que aquilo foi um roubo descarado. Mesmo que não gostem de futebol

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