Do futebol ao judo a depressão no desporto é um tabu que começa a cair
“Tenho uma doença mental: síndrome esquizo-compulsiva. Preciso de medicação e não sabia. É disso que preciso para estar protegido”
CÉLIO DIAS
JUDOCA “Vivi muita coisa muito cedo. Cheguei ao
top 100 aos 23 anos, jogava com os melhores do mundo semana a semana [...] Mas sentia-me um robô. Fazia o que o treinador dizia e ponto”
FREDERICO GIL
TENISTA “É difícil tornar estes problemas públicos porque a maior parte das pessoas, e dos atletas, não querem mostrar fragilidade”
TENGARRINHA
FUTEBOLISTA
“Quando ganhamos, ganhamos todos. Quando perdemos, perdemos sozinhos. É esta a dinâmica do desporto.” A crua conclusão sai da boca de Célio Dias, ao recordar o peso da desilusão sentida após os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, há dois anos. Uma derrota ao primeiro combate, inesperada para quem partira para o Brasil com a “convicção de poder chegar a uma medalha”, fez o judoca português mergulhar num complexo processo mental que o levou a um internamento.
A dificuldade em lidar com resultados inesperados ou expectativas frustradas é uma das principais causas de depressão entre os atletas de alta competição. Frederico Gil também atravessou essa via-sacra quando enfrentou o muro psicológico do top 50 do ranking mundial, numa altura em que estava no topo do ténis português. “A determinada altura percebi que não estava a conseguir chegar ao meu objetivo [top 50]. Comecei a ter momentos complicados com o meu treinador e as pessoas que me rodeavam. E isso cria fragilidades”, recorda o tenista ao DN.
“Comecei a decidir sozinho e sentia-me perdido. Tinha muitas dúvidas. Foi uma fase muito difícil. Caí no ranking, gastei dinheiro a ir treinar lá para fora, seis meses para a Alemanha, algumas semanas nos Estados Unidos... Nunca mais encontrei um caminho seguro e isso desestabilizou o meu jogo”, revê agora, com a força que diz ter encontrado dentro de si próprio, após a ajuda de psicoterapia, para sair de um poço que envolveu um diagnóstico de bipolaridade e uma descida desde o 62.º lugar do ranking ATP até fora do top 1000, entre 2011 e 2014.
Frederico Gil e Célio Dias, que conseguiram reencontrar a estabilidade emocional, são apenas dois exemplos de atletas que tiveram de enfrentar fases de ansiedade, depressão ou outros problemas relacionados com a saúde mental no mundo da alta competição. Há cerca de um mês, o universo do futebol foi surpreendido com a admissão do médio internacional André Gomes, campeão europeu com Portugal em 2016 e atual jogador do Barcelona, que abriu o jogo à revista espanhola Panenka para confessar estar a lidar mal com a pressão no gigante clube catalão, revelando inclusive sentir-se “envergonhado” e com “medo de sair à rua”.
Mas os exemplos têm-se multiplicado nos tempos recentes. Bloqueios mentais, stress competitivo e depressão fazem parte de uma realidade que permaneceu escondida tanto tempo no desporto de alta competição, tratada como um estigma, mas que irrompeu de forma dramática com a morte do guarda-redes alemão Robert Enke, em 2009. O suicídio do ex-benfiquista foi o primeiro grande despertador de consciências para um problema que começa a ver cada vez mais a luz do dia através de vários atletas de referência.
Na NBA, os basquetebolistas DeMar DeRozan e Kevin Love foram notícia
ano por admitirem ter experiências de depressão e ataques de pânico, respetivamente. No futebol, o defesa alemão Per Mertesacker revelou à revista Der Spiegel que tem vómitos antes de cada partida. Michael Carrick, médio inglês que anunciou a retirada no final desta época, disse à BBC que se sentia deprimido ao representar a seleção e pediu para não ser convocado. Na natação, a lituana Ruta Meylutite, campeã olímpica em 2012 com apenas 15 anos, luta contra a depressão “todos os dias”, relacionando-a com a exigência de resultados. E até o maior atleta olímpico de todos os tempos, o nadador americano Michael Phelps, admitiu no início deste ano, à CNN, que chegou a ter pensamentos suicidas. A ignorância como obstáculo “Há fenómenos que ainda suscitam muitas reservas no desporto. Este, da saúde mental, é um deles”, lamenta o presidente do Sindicato dos Jogadores de Futebol Profissional, Joaquim Evangelista. Um lamento partilhado por Susana Feitor, referência nacional da marcha atlética que marcou presença em cinco edições dos Jogos Olímpicos. “Este assunto tem de deixar de ser tabu de uma vez por todas. Tem de deixar de ser um constrangimento um atleta recorrer a apoio psicológico”, refere ao DN a atual vice-presidente da Comissão de Atletas Olímpicos (CAO).
“A perceção dos aspetos psicológicos no ser humano tem evoluído muito ao longo dos tempos. Durante anos isto foi visto como uma fraqueza”, contextualiza o presidente da Sociedade Portuguesa de Psicologia do Desporto, Duarte Araújo. “Não somos apenas seres biológicos, somos também seres psicológicos. Se quem está mal fisicamente vai ao médico, quem está mal psicologicamente deve recorrer a um psicólogo”, indica o professor da Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa. “Ter atletas de referência mundial, como Michael Phelps, a falar sobre isso ajuda a desmistificar. Mostra que também eles passam ou passaram por problemas e tiveram de enfrentá-los, o que pode ajudar outros a atuar mais precocemente”, acrescenta.
No futebol, de acordo com um estudo publicado pela FIFPro (associação mundial que representa os futebolistas), em 2015 havia 33% dos jogadores no ativo a sofrer de perturbação no sono, 18% com sinais de stress e 43% com ansiedade ou sinais de depressão.
“As principais causas desses problemas são o pós-carreira, as lesões, o fracasso desportivo e também a transição do futebol jovem para o profissional”, desfia Jorge Silvério, psicólogo que começou a trabalhar na área de desporto há 25 anos e atualmente faz parte da estrutura da seleção de futsal que se sagrou campeã europeia em fevereiro.
Joaquim Evangelista reconhece que “são poucos os jogadores que expõem as suas dificuldades e menos ainda os que procuram algum tipo de apoio especializado”. “As questões da saúde mental estão na ordem do dia no planeste no europeu. A partir do caso Enke começou a haver jogadores a dar a cara com mais frequência. Mas em Portugal esta admissão ainda tem impacto negativo”, diz, pegando no exemplo do caso André Gomes. “Em Espanha funcionou bem, em Portugal não foi tão bem-visto. Transmitiu-se a imagem do coitadinho. Os jogadores não se querem vitimizar”, frisa Evangelista, que implementou recentemente no Sindicato um projeto de saúde mental, liderado por Bernardo Tengarrinha, futebolista que suspendeu a carreira para tratar um linfoma de Hodgkin (ver peça secundária).
“O grande obstáculo é a ignorância. Ainda há o estigma de que o psicólogo serve para tratar maluquinhos. Mas o tratamento de casos clínicos, digamos assim, é uma percentagem cada vez menos significativa da intervenção do psicólogo. Melhorar o rendimento e a performance é a principal área de intervenção”, esclarece Jorge Silvério, acrescentando que é ainda muito raro “ver equipas da I Liga com psicólogo do desporto nas estruturas técnicas. Nos escalões de formação sim, já há. Mas no profissional ainda há resistência”.
“No futebol há a imagem de que o atleta que recorre a um psicólogo tem um problema. Por isso muitos não querem recorrer ao psicólogo, há esse estigma”, aponta Susana Torres, a mental coach que ganhou projeção desde o trabalho com Eder, avançado que marcou
Célio Dias (foto principal da página) passou por um longo processo de depressão a seguir aos Jogos Olímpicos do Rio. André Gomes, médio português do Barcelona (foto em cima), confessou publicamente que a pressão no clube catalão, onde chegou a ser assobiado em vários jogos, lhe estava até a causar vergonha em sair à rua. Já o tenista Frederico Gil (em baixo) lidou mal com o muro psicológico do top 50 no ranking
o golo da vitória de Portugal no Euro 2016. Uma área em franco crescimento junto dos desportistas, o coaching surge como alternativa ao estigma do psicólogo. “Há dois tipos de atletas que procuram este trabalho: os que sofrem de ansiedade não estão a conseguir lidar com as preocupações e por isso sofrem bloqueios psicológicos e físicos, como aconteceu com o André Gomes; e os que não têm qualquer problema mas procuram melhorar a performance, como foi o caso do Jonas, a determinada altura”, explica a mental coach, para quem “a área dos sentimentos dos atletas é uma área desvalorizada” na alta competição. Psicóloga para Tóquio 2020 O tenista Frederico Gil sentiu-o na pele, com a pressão da alta competição a manifestar-se cedo. “Vivi muita coisa muito cedo. Cheguei ao top 100 aos 23 anos. Jogava semana a semana com os melhores do mundo, era exigente, tinha uma pressão imensa, um desgaste enorme”, descreve, olhando para trás. “Sentia-me um robô. Fazia o que o treinador dizia e ponto.”
Também Célio Dias viu a corda romper após os Jogos do Rio. “Foi como se o chão se abrisse debaixo de mim. Foi muito difícil ultrapassar essa desilusão. Chorei todos os dias. O stress da pressão do resultado foi demasiado. E eu senti grande necessidade de me isolar”, recorda o judoca, que já tinha trabalhado com psicólogos noutras fases da carreira, mas que na preparação para o Rio 2016 não sentiu essa necessidade. “Antes dos Jogos estava tão confiante, tão certo de que ia ter uma medalha... Sentia-me forte, com capacidade para lidar com as frustrações e as exigências da competição.”
A realidade demonstrou que não estava. Célio Dias entrou em depressão e começou a ter surtos psicóticos. “É quando nós perdemos o contacto com a realidade e passamos a ter pensamentos delirantes, que vão ao encontro de um imaginário”, explica ao DN. Na sequência de um desses surtos, o judoca esteve alguns meses internado. “Tenho
uma doença mental, síndrome esquizo-compulsiva. Preciso de medicação e não sabia. É disso que preciso para estar protegido”, diz hoje, de novo “equilibrado, funcional e feliz com a vida” e também de volta aos treinos do judo, mantendo-se acompanhado regularmente por uma psicóloga, uma psiquiatra e um psicoterapeuta: “Trabalham em interligação e isso transmite-me confiança.”
Susana Feitor diz que é preciso “desmistificar de uma vez por todas a síndrome Fernando Mamede no desporto português”. “Criou-se um tabu que não devia existir”, refere a ex-marchadora, admitindo que ela própria sentiu “muitas vezes necessidade de um apoio psicológico” e lamenta não ter tido esse acompanhamento adequado, sobretudo “na fase final da carreira”.
Em cinco participações olímpicas, Susana Feitor nunca viu qualquer psicólogo na comitiva aos Jogos. Em 2016, no Rio, Célio Dias também não tinha. O cenário vai mudar, finalmente, em Tóquio 2020. O Comité Olímpico de Portugal (COP) integrou recentemente a psicóloga do desporto Ana Ramires na estrutura da equipa médica. “Foi uma necessidade identificada há pelo menos três Olimpíadas”, diz o diretor de medicina desportiva do COP, Gomes Pereira, que aponta “um atraso muito grande no reconhecimento desta área mental como fundamental no treino de alto rendimento”. O médico esclarece que “não é papel do COP prestar assistência aos atletas, mas pode ter aqui um papel coordenativo numa rede de hierarquia que engloba clubes, federações e técnicos e em que é difícil por vezes estabelecer essa coordenação”.
Para já, diz, “estamos numa fase inicial de formação”. “É a prioridade. Formar treinadores, dirigentes, atletas e pais para a importância desta área. Em conjunto com as federações, vamos identificar psicólogos e acompanhar o trabalho desses piscólogos. Estabelecer sinergias para implementação de uma ação concertada e duradoura.”
Célio Dias espera contar com esse suporte em Tóquio, onde quer voltar a marcar presença nos Jogos. O judoca decidiu, entretanto, assumir publicamente a homossexualidade – “era um stress adicional de que me libertei e espero que sirva para empoderar outros jovens”– e voltou aos treinos. “O regresso ao judo foi muito importante. Faz parte da minha identidade, dá-me um suporte imenso. Mas quero alterar a forma como olho a competição. Não focar em exagero, para não descurar certas partes da minha vida. Aprender a enfrentar a competição de forma mais saudável”, anuncia.
A mesma atitude devolveu a paz interior a Frederico Gil. Aos 33 anos, garante ter voltado a desfrutar do ténis e recuperou um lugar entre os primeiros 450 do mundo (442.º). “Tenho ainda muitos objetivos pessoais e profissionais. O top 50 e o top 100 continuam presentes. Mas a sanidade mental passou também a ser prioridade. Quero chegar lá, mas quero ser feliz. Antes, estava no topo mas não me sentia bem. Queimei. Foi too much. Estava a tornar-me uma pessoa que não queria.”