Diário de Notícias

Vencedores de leilão anulado vão processar Câmara de Lisboa

Candidatos alegam que casas não fazem parte do Programa Renda Acessível. Poderá haver direito a indemnizaç­ões

- A NA S A NL E Z

Faltavam dois dias para ter a chave na mão. A mudança estava a ser preparada há uma semana quando Rita Castaño soube que afinal não teria direito à casa que arrematou em leilão. Na véspera de assinar o contrato, que entraria em vigor amanhã, a Câmara Municipal de Lisboa ( CML) decidiu que as regras não respeitava­m o interesse público e anulou o resultado do concurso. Os ex- futuros inquilinos estão indignados e vão processar a autarquia.

A base de licitação do 2. º esquerdo do número 28 da Rua da Aliança Operária era de 350 euros. Rita Castaño fez contas à vida e sondou o mercado. Pelo T1 de 47 metros quadrados, novo e equipado, propôs uma renda de 657,77 euros. “Aquela casa no mercado normal chegaria facilmente aos mil euros”, afirma ao DN/ Dinheiro Vivo.

Entregou a proposta num envelope fechado à Sociedade de Reabilitaç­ão Urbana ( SRU) no dia 13 de abril. Quatro dias depois soube que tinha feito a licitação mais alta por aquele imóvel.

Ainda na mesma semana, a psicóloga organizaci­onal descobriu pelas notícias que o resultado do leilão ia ser anulado, por não cumprir “os princípios nem os critérios do Programa Renda Acessível”. Mas um contacto com a SRU aliviou- lhe as preocupaçõ­es. “Disseram que não tinham recebido nenhuma informação oficial por parte da Câmara de Lisboa. Garantiram que continuava­m a preparar os contratos e que podíamos ir assiná- los nos dias previstos, 26 e 27 de abril”, revela Rita Castaño.

Só ao final da tarde de 24 de abril é que Rita e os restantes sete vencedores do concurso obtiveram a confirmaçã­o de que iriam mesmo perder o direito a arrendar as casas. No site da SRU, uma breve nota dava conta da suspensão do processo, “por determinaç­ão” do vereador Manuel Salgado.

Um despacho assinado pelo mesmo responsáve­l explicitav­a que o concurso, “ao assentar o critério de seleção na proposta de valor mais elevado, não prossegue o interesse público que deve presidir à atuação das empresas participad­as deste município”. O vereador garantia ainda que a câmara “assumirá a resolução dos problemas que a situação possa ter desencadea­do ou vir a desencadea­r na esfera dos concorrent­es”.

Os candidatos contestam agora a legalidade da posição da câmara. Argumentam que o leilão da SRU nada tem que ver com o Programa Renda Acessível. “Ninguém da câmara falou connosco. A SRU está do nosso lado e diz que isto é inconcebív­el, porque o concurso só avançou porque tinha uma or- dem da CML. Estão a pôr tudo no mesmo saco quando estamos a falar de coisas diferentes”, explica Rita Castaño.

Caução e duas rendas Na passada quinta- feira, a psicóloga não foi a única candidata a dirigir- se à reunião pública da CML para pedir satisfaçõe­s. A quem compareceu, a câmara presidida por Fernando Medina agendou reuniões individuai­s para esta semana. Mas Rita e pelo menos mais cinco dos candidatos já tomaram uma decisão. “Vamos contratar um advogado e entrar com uma ação judicial.” Alegam que a câmara cedeu à pressão mediática para anular o concurso.

É essa a posição de Fernando Crivellaro. O engenheiro ia ser vizinho de Rita Castaño, no 1. º direito do mesmo prédio, que arrematou com uma proposta de renda de 675,51 euros. Já tinha avisado o atual senhorio de que iria mudar de casa no final do mês. Agendou reuniões com uma IPSS na zona da Ajuda para inscrever a filha de 2 anos, dando a morada da suposta casa nova. Mas na semana passada recebeu “o choque”.

“Pagámos uma caução de 1750 euros e mais duas rendas adianta- das, já depois de uma garantia inicial de 500 euros. Após as primeiras notícias a SRU garantiu- nos que os contratos iam ser assinados. Tínhamos tudo organizado. Agora estamos numa situação muito difícil”, conta Fernando Crivellaro.

O engenheiro tem uma reunião agendada na Câmara de Lisboa na próxima quarta- feira. “Acho que será para tratar dos danos que sofremos, não será para dar continuida­de ao processo, que é o que nos interessa.”

Fernando Crivellaro recorre aos documentos da câmara e da SRU para sustentar a argumentaç­ão. “O regulament­o do leilão não menciona que aqueles fogos são destinados ao Programa Renda Acessível. Nos estatutos da SRU, no que diz respeito às competênci­as da câmara, não está lá a anulação de procedimen­tos em curso. E o Plano de Atividades da SRU foi aprovado pela câmara”, destaca.

O prédio da Rua da Aliança Operária é referido no relatório e contas de 2016 da SRU. O documento i ndica que os sete f ogos, construído­s em 2016, deveriam ser arrendados no primeiro semestre de 2017. O leilão, o quarto promovido pela entidade municipal, acabou por acontecer apenas

Os 121 candidatos entregaram as propostas de renda até 13 de abril em carta fechada e uma garantia de interesse de 500 euros Os oito vencedores do leilão anulado vão ser ouvidos ao longo desta semana por vereadores na Câmara de Lisboa

um ano depois, e chamou a atenção de 121 candidatos. Bem mais do que os 15 i nteressado­s que participar­am no segundo concurso, em 2016. Nesse, as rendas ficaram 35% acima do valor- base de licitação. Em média, as rendas finais foram de 575 euros e a idade dos candidatos rondava os 32 anos. Já em junho do ano passado, a SRU arrendou uma moradia, também na Ajuda, por uma renda de 1465 euros.

No último leilão, além do prédio com sete apartament­os da Rua da Aliança Operária, foi arrematada uma moradia na Travessa da Memória por 916 euros. Todas as casas estão equipadas com frigorífic­o, máquinas de lavar roupa e louça, forno, painéis solares, entre outros eletrodomé­sticos.

Já a sonhar com a casa nova, o vencedor do leilão do 1. º esquerdo, que não quer ser identifica­do, saiu da casa dos amigos onde vivia temporaria­mente e mudou- se para um hostel. “Era para ser por 15 dias mas agora vou ter de ficar aqui um mês e meio ou dois”, conta.

A proposta que lhe valeu o apartament­o foi de 663 euros. “Não conheço nenhum leilão que tenha um teto máximo. Isto era uma coisa simples e direta, se fosse um pro- cesso de rendas acessíveis, burocrátic­o, não me teria candidatad­o. Há uma confusão muito grande à volta disto”, salienta.

João Gonçalves Pereira, vereador da CML pelo CDS, dá- lhes razão. O responsáve­l questionou Fernando Medina na última reunião pública da CML, a 26 de abril, sobre as orientaçõe­s que a autarquia deu à SRU neste processo. O presidente da câmara argumentou que a situação resultou da “falta de comunicaçã­o adequada entre a Câmara de Lisboa e a SRU, que fez que os critérios de renda acessível não tivessem sido aplicados neste concurso. Ou melhor, foram aplicados com o preço - - base de um leilão quando deveriam ter sido aplicados com o preço de referência para um concurso”. Medina acrescento­u que “neste momento, não nos parece que faça sentido a câmara promover leilões” de onde resultem preços altos “em virtude da situação do mercado”.

João Gonçalves Pereira admite que os candidatos possam vir a ter direito a indemnizaç­ões, porque “foram criadas expectativ­as”.

O DN/ DV tentou contactar o vereador Manuel Salgado, ao longo do dia de ontem, sem sucesso.

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