Diário de Notícias

Lar Militar quase vazio e com pavilhão novo fechado há três anos

- MANUEL C A R LO S F R E I R E PE DRO ROCHA ( F OTOS)

Fechar a cozinha do Lar Militar da Cruz Vermelha, por falta de condições, foi uma das primeiras decisões do coronel Crispim Gomes após assumir funções como diretor, a 1 de janeiro de 2018. Um problema que se junta a outras críticas de quem lá vive e trabalha e às quais responde: “Estamos no ano zero”

Quem vive e trabalha no Lar Militar da Cruz Vermelha, em Lisboa, depara- se todos os dias com as mesmas dúvidas e perplexida­des: como é que a instituiçã­o do Lumiar, fundada em 1971, tem por estrear, ao fim de três anos, um pavilhão – nove quartos com casa de banho individual e estores elétricos ( sem sinalética ou plano de saída de emergência) – que custou centenas de milhares de euros? Ou como foram feitas obras no edifício original, forrando os corredores a papel azul forte e com abajures da mesma cor – mas sem colocar extintores “por razões estéticas”, diz o presidente da comissão de residentes, Vítor Ribeiro – mas há quartos com paredes cheias de bolor, portas onde deixaram de passar macas ou um refeitório com o teto repleto de fungos? “Estamos no ano zero”, responde o diretor.

As interrogaç­ões continuam: investiram- se milhares de euros para transforma­r a piscina num local digno de um hotel de cinco estrelas, mas as escadas de acesso continuam cheias de ferrugem e os azulejos dentro de água a cair? Remodelou- se a divisão onde se dá banho aos 26 utentes – muitos acamados, cheios de feridas e com incapacida­des de quase 100% – e os ralos no interior estão partidos, ou nem existem à entrada, pelo que o corredor contíguo fica todas as manhãs alagado? E como é que, num verão com temperatur­as na casa dos 40 graus, os aparelhos de ar condiciona­do continuara­m avariados? Ou em pleno inverno “demoraram três meses a arranjar janelas partidas?”, questiona Vítor Ribeiro, já sem conter as lágrimas e com voz embargada – levando o diretor a fazer o que antes dissera ao DN não ser capaz ( alegadamen­te por formação militar): dar- lhe festas, dizer- lhe com voz quase doce “isto está melhor, é o ano zero, veem- se as coisas a acontecer.”

Fechar a cozinha do Lar Militar da Cruz Vermelha Portuguesa foi uma das primeiras decisões tomadas pelo coronel Crispim Gomes após assumir funções como diretor, a 1 de janeiro de 2018. Daí para cá, além da recusa em mostrar aquele espaço tão degradado, o oficial superior de Cavalaria agarra- se a duas certezas: “Só conheço o regulament­o e este é o ano zero” da instituiçã­o, como que a dizer que não quer comentar gestões passadas.

Mas porque é que o regulament­o interno aprovado pelo secretário de Estado da Defesa só começou a ser implementa­do um ano depois e já com o novo diretor? E como é que tudo isso aconteceu tanto tempo, quando a Cruz Vermelha depende do Ministério da Defesa e as queixas daqueles Deficiente­s das Forças Armadas ( DFA) são feitas há anos – e por escrito? “Há muita coisa, as pessoas não sabem... não sabem porque não quiseram saber [ e] não fizeram porque não quiseram”, continua o líder da comissão de residentes do Lar Militar, lembrando ao novo diretor que “as questões vêm de antes do ano zero”.

“Onde estão os DFA?”, interroga Vítor Ribeiro, que ficou tetraplégi­co em 1993, quatro dias após jurar bandeira como fuzileiro, devido a acidente numa piscina.

O problema foi levantado há dias pelo deputado João Rebelo ( CDS), quando a comissão parlamenta­r de Defesa aprovou a proposta do PS para criar um grupo de trabalho que resolva de vez problemas com que os DFA ainda se confrontam. Ao falar do Lar Militar, o alerta começou com uma pergunta aos outros deputados: “O que podemos fazer” quando a Cruz Vermelha Portuguesa – fundada em 1865 como Comissão Provisória para Socorros a Feridos e Doentes em Tempo de Guerra – “não está a cumprir” as suas obrigações? E quando “dá prioridade a deficiente­s que não são militares” no acesso a um espaço “que não é da Cruz Vermelha mas da Defesa”?

Crispim Gomes garante ao DN, contudo, que os deputados estão mal informados sobre a alegada resistênci­a na admissão de utentes. “Falta conhecimen­to”, pois “não há militares em lista de espera e não há pedidos de novas admissões” para um espaço onde é preciso ter pelo menos 60% de desvaloriz­ação. Mas Vítor Ribeiro contrapõe: A partir dos anos 2000, “sempre se dis- se que houve entraves da Cruz Vermelha” em acolher novos DFA, desde logo porque “também tinha de dar aval a essas entradas”.

Vítor Ribeiro, que já presidia à anterior comissão de utentes, recorda o tempo anterior à chegada de Crispim Gomes: “Chegámos a um ponto” em que, face à ausência de respostas da anterior responsáve­l ( uma coordenado­ra que era enfermeira), “só não falámos com o Presidente da República em 2017.” À memória vem- lhe ainda a realidade do Lar em 1993, quando “o refeitório era um burburinho” com dezenas de residentes: “Nos primeiros anos fomos sempre de férias para o Algarve”, mas “depois começaram a arranjar pretextos para não haver férias”, assinaland­o uma degradação progressiv­a que abrangia “mesmo o pessoal que vinha trabalhar”.

Lopes Dias, vice- presidente da Associação dos Deficiente­s das Forças Armadas ( ADFA), diz que o Lar Militar “deteriorou- se nos últimos 20 anos” porque “passou a ser a retaguarda do Hospital da Cruz Vermelha”. Mas isso “adulterou o princípio fundador” do lar – “acolher os deficiente­s militares e não ser uma unidade de cuidados continuado­s” daquele hospital. Em 2016 informaram a tutela que o ambiente “era insustentá­vel” e marcado por “situações anómalas e atentatóri­as dos direitos humanos”.

O secretário de Estado da Defesa, diz José Arruda, líder da ADFA, aprovou em janeiro de 2017 “um regulament­o para recuperar os princípios originais” da instituiçã­o – ao “dizer que o Lar é autónomo” da Cruz Vermelha e deveria promover “acolhiment­o temporário para dar descanso aos cuidadores”. Mas “a Cruz Vermelha fez orelhas moucas”.

“Só foi possível que [ o regulament­o] fosse acolhido na sua plenitude” no final de novembro do ano passado, “quando a Cruz Vermelha mudou de presidente” com a posse do ex- diretor- geral da Saúde Francisco George, elogia José Arruda. As alterações foram duas e quase imediatas: “Nomeou um militar para diretor e retirou o Lar do hospital, colocando- o diretament­e dependente de si.”

“Com Francisco George entrou o 25 de Abril no Lar Militar”, exclama José Arruda. Com o coronel, “o Conselho Consultivo já funcionou, quando era muito raro reunir”. Agora “está- se quase numa fase fundaciona­l” daquela unidade, sustenta o comendador.

André Santana, membro da comissão de utentes do Lar e do Conselho Nacional da ADFA, lembra ao DN que “faltavam auxiliares médicos, havia discussões... agora o ambiente é melhor”. Ao fim de quatro meses, “as expectativ­as são grandes. Há uma mudança para melhor na alimentaçã­o, que agora vem de fora. O médico começou a ir mais vezes, já temos uma psicóloga uma vez por dia”, enaltece o deficiente militar que, em 2003, ficou tetraplégi­co num exercício na piscina da Escola Naval.

Uma “guerra justa”

O novo diretor está empenhado em dar respostas aos residentes, pois é “parte da solução” – mesmo que ainda não tenha telefone nem internet.

Para isso, além de encontros com o general Ramalho Eanes e com os quatro chefes militares, o coronel Crispim Gomes colocou um especialis­ta militar em Logística como seu braço direito, comprou um cartão de telemóvel para quem fica à noite ter um número de urgência, requalific­ou duas das seis cozinheira­s como auxiliares de ação médica, colocou um televisor na sala do pessoal auxiliar – por ser ali que está o quadro com as luzes de aviso dos quartos.

Nesses quartos há 26 residentes, 21 permanente­s e cinco em regime de ambulatóri­o, com uma idade média de 60 anos. Há 16 militares – o mais antigo admitido em 1972 e o mais velho com 82 anos – e nove civis, cinco deles admitidos por via das seguradora­s. Se uns estão acamados e totalmente dependente­s, os que usam cadeiras de rodas conseguem aproveitar o jardim interior para apanhar ar ou somente fumar.

O diretor passou também a controlar as contas – e as poupanças conseguida­s, num orçamento de 700 mil euros onde quase metade são salários, parecem revelar algum descontrol­o financeiro da gestão anterior: face a iguais períodos de 2017, nos três primeiros meses poupou 25% nas despesas com água, 48% com a lavandaria, 23% em combustíve­l, 35% com gás e 6% em alimentaçã­o. Quanto à fatura da eletricida­de, a redução em janeiro e fevereiro chegou aos 28% face ao mesmo período do ano passado. Tudo somado, economizou praticamen­te 12 mil euros líquidos.

A sua formação de militar tem- no levado ainda a “arranjar espírito de corpo” no Lar: organizou o Dia da Mulher para as funcionári­as, levou os utentes ao cinema – “têm de sair daqui” – e já lhes disse que a 13 de maio vão a Fátima; contactou amigos num banco e numa empresa para criar um prémio destinado a trabalhado­res que ganham o salário mínimo ou pouco mais ( mesmo licenciado­s), por um trabalho que em muitos casos “exige um esforço físico e psicológic­o brutal”; conseguiu que passassem a ter subsídio de alimentaçã­o.

Sentindo que está numa “guerra justa” que lhe dá “uma força moral muito grande”, porque “não faz política” e trabalha pro bono, o coronel declara que as coisas serão feitas à sua maneira ou vai- se embora. Em preparação tem um conjunto de normas de execução permanente – as famosas NEP da vida militar, que o fazem sorrir – que, por enquanto, resumem- se a espalhar autocolant­es com alertas ( fechar a torneira, apagar a luz, ...) pelo lar.

E se tem o sonho de concretiza­r parcerias que a prazo permitam rentabiliz­ar as instalaçõe­s ( piscina, hidromassa­gem, sala de fisioterap­ia, pavilhão novo) do Lar Militar, transforma­ndo- o num centro como o de Alcoitão, o diretor que trata “todos por tu” já sabe qual o seu próximo passo: ir a Belém, para propor que o Chefe do Estado e comandante supremo das Forças Armadas condecore pela primeira vez um Grande DFA – um gesto simbólico que inclua todos eles, inclusive os africanos.

 ??  ?? Diretor do Lar Militar desde 1 de janeiro deste ano, o coronel Crispim Gomes rejeita abrir o novo pavilhão sem mais funcionári­os, única forma de manter a qualidade de vida e os cuidados que consegue dar aos 26 residentes
Diretor do Lar Militar desde 1 de janeiro deste ano, o coronel Crispim Gomes rejeita abrir o novo pavilhão sem mais funcionári­os, única forma de manter a qualidade de vida e os cuidados que consegue dar aos 26 residentes
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal