Coisas da vida
Por mais voltas que demos ao assunto, por mais “autonomia” e “independência” que lhes sejam outorgadas pelos autores, as personagens refletem ( quase) sempre os traços da “paternidade” – ou “maternidade” – de quem as cria, permitindo- se depois viajar por mundos e situações e até ideias que, se calhar, quem lhes deu alma e voz não controla por inteiro. Há quem entenda a personagem como uma máscara, quem prefira encará- la como um prolongamento, quem arrisque a sentença de que se trata, até, de uma alternativa à segurança, nem sempre cómoda, do escritor. Mas che gam, de igual forma e felizmente, os momentos em que esses leitores do mundo, não como o conhecemos mas como o sonhamos, dispensam o intermédio das suas criaturas e vêm a terreno, olhos abertos e “peito feito”, dar testemunho das respetivas observações e conjeturas. Trata- se, se utilizarmos uma contabilidade criativa, de um momento de “participação cívica” de quem, por usar a própria identidade, não fica dispensado de continuar a ter, sobre o tudo e sobre o nada, um olhar artístico, capaz de detetar a transcendência no que aos outros surge como uma banalidade.
Vem tudo isto a propósito de Instantâneos, este pequeno volume em que o escritor, tradutor e académico Claudio Magris ( n. 1939) recorre a episódios da sua vida, todos curtos e todos assertivos, para os transformar em pequenos tratados de observação, para os moldar às pessoalíssimas reflexões, para os “privatizar”, neles inculcando uma firme “impressão digital”, ao mesmo tempo que os torna públicos. Se quase tudo lhe serve de ponto de partida, uma fotografia, uma conversa, uma notícia de jornal, uma lei, há uma tendência clara para aproveitar aquilo a que convencionámos designar pela circunstância de “ter mundo”. O autor vai buscar muito do que quer deixar dito às suas próprias viagens, ao choque e à surpresa do que encontra noutras geografias e noutras culturas – estranhando, assimilando e, depois, retratando ( não no sentido da imagem, mas no de “voltar a tratar”). Para quase infalivelmente concluir que, apesar de todas as peculiaridades e idiossincrasias, acabamos por ser todos mais parecidos e próximos do que, possivelmente, gostaríamos de admitir.
Há passagens verdadeiramente preciosas. Como aquela em que examina o facto de um conto de Hans Christian Andersen ter sido retirado do programa escolar dinamarquês por causa do seu “final” cristão – para não ofender os crentes de outras religiões. Escreve Magris: “Na sua escrupulosa estupidez, esta é uma etapa decisiva na história universal da censura. Neste caso, trata- se de uma censura bem- intencionada, movida pela preocupação de não perturbar as minorias culturais e religiosas. Mas a censura, no fundo, é sempre bem- intencionada, quer proteger a moralidade, a pátria, a família, as instituições, a ordem, a sociedade, o progresso, o povo, as crianças, a saúde. Neste caso escolhe- se uma nova fórmula: em vez de queimar um livro ou de proibir a sua leitura aos seguidores (…), adapta- se às pretensas exigências dos leitores, grosso modo como nos ‘ resumos contados às crianças e ao povo’ das obras- primas que se usavam no tempo da minha infância, ou nas edições escolares dos clássicos, nos quais os passos escabrosos – por exemplo, quando na Odisseia Ulisses náufrago na ilha dos Feaces sai nu do mar – eram substituídos por reticências…”
Este momento tem por título “Um novo escritor: o censor”. E, acredite, é – no seu alerta – apenas um dos 47 sinais dos horizontes largos e das ideias abertas de Claudio Magris. Não há verbos de encher, fica garantido. Nem sequer a passagem em que este eterno candidato ao Nobel aceita, humildemente, ser reconhecido e identificado por seu o dono do seu cão. São lições que aí ficam – e sem exame, prévio ou posterior.
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