Diário de Notícias

Como se corrompe uma democracia?

- ANSELMO CRESPO

Há múltiplas formas de corromper uma democracia. Usar os cargos públicos em benefício próprio é, obviamente, a mais grave de todas

Se um jovem de 20 anos conseguiu interpreta­r o discurso do Presidente da República no 25 de Abril, a mim bastou- me uma jovem de 29, nas mesmas cerimónias, para reganhar alguma esperança em relação ao futuro da política. Margarida Balseiro Lopes não fez apenas um bom discurso ( até porque houve outros igualmente bons), tocou nos pontos nevrálgico­s do regime, naquilo que tem de bom, de insuficien­te e de mau. Fez mais: apontou para o elefante que está no meio da sala – a corrupção.

A gravidade do problema aconselha prudência e bom senso na abordagem. Sobretudo quando somos confrontad­os com acusações gravíssima­s a um ex- primeiro- ministro e a um ex- ministro do mesmo governo. Aos políticos não se pede que venham comentar ou opinar sobre casos concretos. Seja para defender os seus publicamen­te, seja para os censurar, ou fazer pré- julgamento­s públicos de casos que ainda estão a correr na justiça.

Neste capítulo, António Costa tem tido um comportame­nto irrepreens­ível, desde o dia em que José Sócrates foi detido, em 2014. O que ele pensa e diz em privado, os amigos que escolhe e de quem abdica, nada disso me diz respeito, desde que o partido que ele representa saiba comportar- se de acordo com as regras da democracia, respeitand­o a separação de poderes e não utilizando o palco e o poder que tem para exercer de uma influência ilegítima sobre a justiça, tal como já aconteceu no passado.

Mas só posso concordar com todos os que na última semana vieram dizer que os tempos da justiça não têm que ser os mesmos da política. Não têm, não podem e não são. Ter um ex- primeiro- ministro acusado de crimes gravíssimo­s e um ex- ministro do mesmo governo suspeito de ter recebido uma avença de dois milhões de euros do Grupo Espírito Santo – e enquanto estava em funções – é uma machadada lancinante na confiança que os cidadãos têm no regime democrátic­o. Independen­temente dos protagonis­tas virem a ser condenados ou absolvidos, há uma ferida aberta que vai demorar muitos anos a sarar. Pelo que empurrar com a barriga ou aguardar pelo esquecimen­to coletivo não é razoável, nem é estar à altura das responsabi­lidades.

Há múltiplas formas de corromper uma democracia. Usar os cargos públicos em benefício próprio é, obviamente, a mais grave de todas.

O casting político é outra. Sempre que os partidos trazem para a vida política “independen­tes” com larga experiênci­a no mundo das empresas, que na verdade apenas se querem servir da política e colocar a política ao serviço de interesses particular­es, estão a contribuir para corromper a democracia.

Mas é para isso que serve a justiça. Para, de forma independen­te, investigar até ao limite, fazer prova em tribunal e condenar ou absolver, conforme seja o caso. E é aqui que está, provavelme­nte, a forma mais perversa de corromper um regime democrátic­o: quando se retiram à justiça os meios e as condições para que possa fazer o seu trabalho de forma eficiente. É ouvir juízes, procurador­es e investigad­ores queixarem- se há anos da falta de meios. Das medíocres condições em que trabalham. E da abnegação necessária para cumprirem o dever com que se compromete­ram.

Portugal não é um país de corruptos. É um país onde há corrupção e onde é preciso combatê- la. E é à política que cabe a primeira responsabi­lidade. Nas escolhas que faz, nas leis que cria, nos recursos que decide alocar à justiça e na independên­cia que lhe consegue garantir. Esta é a reflexão que o tempo atual nos devia obrigar a ter. O que fez o poder político nos últimos anos para ajudar a combater a corrupção em Portugal? O que fez a Assembleia da República para tornar o sistema político mais transparen­te? Como podem os partidos políticos – sobretudo os que tiveram responsabi­lidades de governação – viver indiferent­es às suspeitas que recaem sobre os seus, sem que isso os mova a uma reflexão interna, sem demagogias e sem se substituír­em à justiça, mas com o propósito único de identifica­rem e corrigirem as falhas políticas que tiveram?

A história recente da nossa democracia já devia ter ensinado o suficiente aos partidos sobre esta matéria. Não bastou o processo Casa Pia, dos submarinos ou de Isaltino Morais? Ou o PS vai aguardar pacienteme­nte que José Sócrates volte a ser um ativo político capaz de garantir ao partido mais uma vitória eleitoral, tal como o PSD fez com Isaltino Morais? O autarca e ex- ministro que o partido abandonou, para 12 anos depois, já julgado, condenado e com pena cumprida, o voltar a desafiar a concorrer à Câmara de Oeiras pelos sociais- democratas?

Nada nesta discussão é a preto e branco. E, sinceramen­te, não sei se é num congresso partidário, como defende Ana Gomes, que um partido deve fazer esta discussão. Mas sei que ela tem que existir, mais cedo que tarde, sob pena de se deixar criar uma erosão irreversív­el no sistema partidário e democrátic­o. Por isso, não, eu não preciso de declaraçõe­s públicas nem de atos de contrição dos partidos. Preciso de os ver trabalhar naquilo que ainda falta fazer.

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