Uma PGR que nunca leu Kafka – ou a Constituição
Na semana passada escrevi sobre as imagens dos interrogatórios a arguidos e testemunhas emitidas em dois canais de TV. Debrucei- me não acerca da divulgação mas sobre a própria tomada de imagens pelo MP e se os filmados sabiam que o estavam a ser – já que eu própria, testemunha no Marquês, fui filmada, com o meu advogado, sem termos sido disso avisados e sem dar para tal a nossa aquiescência, e o mesmo sucedeu, descobri, com outros inquiridos no DCIAP e seus representantes legais, naquele e noutros processos.
Volto ao assunto porque não vi qualquer esclarecimento formal da PGR – nem dei conta de lhe o ter sido, por qualquer jornal, TV, rádio ou site noticioso, requerido. O que vi foram jornalistas, ao invés de questionarem a PGR, a falar por ela, afirmando, de forma categórica, que “todas as pessoas filmadas sabiam”. Foi o caso de Rodrigo Guedes de Carvalho, no jornal da SIC de terça, face à dúvida de Miguel Sousa Tavares sobre o assunto – sem, no entanto, dizer em que fundamentava tal certeza.
Curiosamente tal sucedeu no dia seguinte a um Prós & Contras da RTP sobre a divulgação das imagens. Neste, o presidente da Secção de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, Paulo Saragoça da Matta, certificou que vários colegas lhe tinham telefonado, depois de a OA condenar a divulgação das imagens, a comunicar que eles e os clientes tinham sido filmados no DCIAP sem saberem. Também presentes no painel, o presidente da Associação Sindical dos Juízes, Manuel Soares, e o professor de Direito Penal André Lamas Leite frisaram que todas as pessoas, arguidas ou não, têm direito à imagem – consagrado na Constituição. Este último tinha já, em artigo no Público, certificado que se no caso dos arguidos a lei prevê que os interrogatórios possam ser gravados em áudio ou vídeo, no das testemunhas não. E que “é discutível se, com o consentimento da testemunha, não se poderá recorrer a essa forma de registo”. Ou seja, para este especialista, a PGR ao gravar e filmar testemunhas sem autorização violou a lei.
Mas a presença mais esclarecedora no P& C foi a do procurador Carlos Filipe Preces, apresentado como pertencendo à equipa de Rosário Teixeira no Marquês. Começando por se afirmar “desconfortável” com a divulgação das imagens, “em primeiro lugar por ser crime” mas também por contribuir “para a vitimização dos arguidos”, prosseguiu garantindo que “naquela diligência as pessoas sabiam que estavam a ser filmadas” ( não foi percetível a que dili- gência se referia, já que foram divulgadas, entre SIC e CMTV, imagens de pelo menos dez inquirições, incluindo a minha), “até porque consta do auto essa referência” ( o auto é o documento que se assina no fim), e argumentando que “o processo já está público” ( acabou o segredo de justiça), que se trata de “um crime de corrupção, em relação ao qual a lei prevê um escrutínio o mais alargado possível” – daí, frisou, a possibilidade de qualquer pessoa se poder constituir como assistente no processo – , que os inquiridos “são pessoas com elevada notoriedade social, por força das funções políticas e sociais que exerceram e isso leva necessariamente a uma compressão dos seus direitos fundamentais” e, por fim, que “a cidadania informada em democracia exige a quem exerce funções públicas que tenha uma esfera de honra mais mitigada”.
Nas suas intervenções, Preces nunca evidenciou qualquer sensibilidade ou preocupação em relação aos direitos dos inquiridos; para ele só conta “o processo”. Chegou aliás ao ponto de demonstrar que nunca lhe ocorreu que se em audiências de julgamento, atos por natureza públicos, só é possível os media captarem imagens com autorização do juiz isso decorre do respeito pelo direito à imagem dos intervenientes – daí, como frisou o juiz Manuel Soares, que o magistrado que preside à audiência tenha de perguntar aos arguidos se permitem. Para Preces, só podia estar em causa “a integridade do processo”.
A ignorância e o sectarismo evidenciados por este procurador, que nunca terá ouvido falar de Kafka, não são apenas de gelar o sangue por alguém com este perfil estar naquelas funções; exprimem, porque obviamente Preces não foi ao P& C sem autorização superior e para exprimir a sua perspetiva pessoal, a posição da PGR. E o que a PGR tem a dizer ao fim de uma semana de sucessivos crimes de divulgação de imagens de inquirições, muitas delas respeitantes a pessoas que, ao contrário do que Preces diz, nem sequer desempenharam quaisquer funções públicas ( de algumas nunca tinham sido publicadas imagens), é que só vê problema se isso prejudicar “o processo”. Direitos das pessoas? Garantias constitucionais? Que é lá isso? Como Preces tão bem explicou, a PGR decretou que os inquiridos perderam o direito a direitos; minudências como ser acusada de filmar ilegalmente testemunhas não lhe merecem uma palavra. Ver um procurador invocar, na TV, a “cidadania informada” e portanto o “interesse público” a propósito da divulgação das imagens de inquirições, defendendo- a com os mesmos argumentos dos órgãos de comunicação social que a fizeram e dos opinadores que a apoiam, demonstra a que ponto de despudor e perversão chegou a máquina judicial portuguesa. E o jornalismo que, quando não beneficia e aplaude, acha que nada disto é notícia.