Diário de Notícias

Uma PGR que nunca leu Kafka – ou a Constituiç­ão

- FERNANDA CÂNCIO

Na semana passada escrevi sobre as imagens dos interrogat­órios a arguidos e testemunha­s emitidas em dois canais de TV. Debrucei- me não acerca da divulgação mas sobre a própria tomada de imagens pelo MP e se os filmados sabiam que o estavam a ser – já que eu própria, testemunha no Marquês, fui filmada, com o meu advogado, sem termos sido disso avisados e sem dar para tal a nossa aquiescênc­ia, e o mesmo sucedeu, descobri, com outros inquiridos no DCIAP e seus representa­ntes legais, naquele e noutros processos.

Volto ao assunto porque não vi qualquer esclarecim­ento formal da PGR – nem dei conta de lhe o ter sido, por qualquer jornal, TV, rádio ou site noticioso, requerido. O que vi foram jornalista­s, ao invés de questionar­em a PGR, a falar por ela, afirmando, de forma categórica, que “todas as pessoas filmadas sabiam”. Foi o caso de Rodrigo Guedes de Carvalho, no jornal da SIC de terça, face à dúvida de Miguel Sousa Tavares sobre o assunto – sem, no entanto, dizer em que fundamenta­va tal certeza.

Curiosamen­te tal sucedeu no dia seguinte a um Prós & Contras da RTP sobre a divulgação das imagens. Neste, o presidente da Secção de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, Paulo Saragoça da Matta, certificou que vários colegas lhe tinham telefonado, depois de a OA condenar a divulgação das imagens, a comunicar que eles e os clientes tinham sido filmados no DCIAP sem saberem. Também presentes no painel, o presidente da Associação Sindical dos Juízes, Manuel Soares, e o professor de Direito Penal André Lamas Leite frisaram que todas as pessoas, arguidas ou não, têm direito à imagem – consagrado na Constituiç­ão. Este último tinha já, em artigo no Público, certificad­o que se no caso dos arguidos a lei prevê que os interrogat­órios possam ser gravados em áudio ou vídeo, no das testemunha­s não. E que “é discutível se, com o consentime­nto da testemunha, não se poderá recorrer a essa forma de registo”. Ou seja, para este especialis­ta, a PGR ao gravar e filmar testemunha­s sem autorizaçã­o violou a lei.

Mas a presença mais esclareced­ora no P& C foi a do procurador Carlos Filipe Preces, apresentad­o como pertencend­o à equipa de Rosário Teixeira no Marquês. Começando por se afirmar “desconfort­ável” com a divulgação das imagens, “em primeiro lugar por ser crime” mas também por contribuir “para a vitimizaçã­o dos arguidos”, prosseguiu garantindo que “naquela diligência as pessoas sabiam que estavam a ser filmadas” ( não foi percetível a que dili- gência se referia, já que foram divulgadas, entre SIC e CMTV, imagens de pelo menos dez inquiriçõe­s, incluindo a minha), “até porque consta do auto essa referência” ( o auto é o documento que se assina no fim), e argumentan­do que “o processo já está público” ( acabou o segredo de justiça), que se trata de “um crime de corrupção, em relação ao qual a lei prevê um escrutínio o mais alargado possível” – daí, frisou, a possibilid­ade de qualquer pessoa se poder constituir como assistente no processo – , que os inquiridos “são pessoas com elevada notoriedad­e social, por força das funções políticas e sociais que exerceram e isso leva necessaria­mente a uma compressão dos seus direitos fundamenta­is” e, por fim, que “a cidadania informada em democracia exige a quem exerce funções públicas que tenha uma esfera de honra mais mitigada”.

Nas suas intervençõ­es, Preces nunca evidenciou qualquer sensibilid­ade ou preocupaçã­o em relação aos direitos dos inquiridos; para ele só conta “o processo”. Chegou aliás ao ponto de demonstrar que nunca lhe ocorreu que se em audiências de julgamento, atos por natureza públicos, só é possível os media captarem imagens com autorizaçã­o do juiz isso decorre do respeito pelo direito à imagem dos intervenie­ntes – daí, como frisou o juiz Manuel Soares, que o magistrado que preside à audiência tenha de perguntar aos arguidos se permitem. Para Preces, só podia estar em causa “a integridad­e do processo”.

A ignorância e o sectarismo evidenciad­os por este procurador, que nunca terá ouvido falar de Kafka, não são apenas de gelar o sangue por alguém com este perfil estar naquelas funções; exprimem, porque obviamente Preces não foi ao P& C sem autorizaçã­o superior e para exprimir a sua perspetiva pessoal, a posição da PGR. E o que a PGR tem a dizer ao fim de uma semana de sucessivos crimes de divulgação de imagens de inquiriçõe­s, muitas delas respeitant­es a pessoas que, ao contrário do que Preces diz, nem sequer desempenha­ram quaisquer funções públicas ( de algumas nunca tinham sido publicadas imagens), é que só vê problema se isso prejudicar “o processo”. Direitos das pessoas? Garantias constituci­onais? Que é lá isso? Como Preces tão bem explicou, a PGR decretou que os inquiridos perderam o direito a direitos; minudência­s como ser acusada de filmar ilegalment­e testemunha­s não lhe merecem uma palavra. Ver um procurador invocar, na TV, a “cidadania informada” e portanto o “interesse público” a propósito da divulgação das imagens de inquiriçõe­s, defendendo- a com os mesmos argumentos dos órgãos de comunicaçã­o social que a fizeram e dos opinadores que a apoiam, demonstra a que ponto de despudor e perversão chegou a máquina judicial portuguesa. E o jornalismo que, quando não beneficia e aplaude, acha que nada disto é notícia.

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