Diário de Notícias

“CONHECE ALGUÉM DISPOSTO A MORRER PELA UE? QUEM OUVE ESTA PERGUNTA RI- SE. É ISTO QUE TENHO A DIZER SOBRE A UE”

- LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Fundador da Stratfor e atual presidente da Geopolitic­al Futures, George Friedman será o principal palestrant­e da 3. ª Conferênci­a de Lisboa, que se realiza quinta e sexta- feira na Fundação Gulbenkian e onde, além do americano, também haverá oradores russos, chineses e indianos, entre outros, com o mote Desenvolvi­mento em Tempos de Incerteza. O DN conversou via Skype com Friedman, que vive em Austin, no Texas, e dá a conhecer nesta entrevista o pensamento atual do autor dos livros A Próxima Década e Os Próximos 100 Anos.

A China vai ser a próxima superpotên­cia, ainda mais forte do que os EUA? Não. A China é um país muito fraco. Economicam­ente é muito fraco porque depende de unidades industriai­s maiores do que o seu mercado interno pode consumir, por isso tem de exportar. Por isso depende dos clientes. Quando estamos a vender uma coisa dependemos dos clientes. A China depende totalmente dos clientes para se manter. E agora que as suas exportaçõe­s baixaram, depois de 2008, está a viver uma crise financeira interna enorme. Que eles resolveram criando uma ditadura, porque o processo criado por Deng Xiaoping já não funciona. O que a China fez foi criar um modelo económico muito pouco eficiente em que tudo é gerido centralmen­te mas um modelo politicame­nte muito eficiente, que mantém o país unido. De um ponto de vista militar, para dar um exemplo de como são fracos, o mar do Sul da China é extremamen­te importante para eles. Durante dez anos tentaram controlá- lo, durante dez anos falharam. Continuam a não conseguir fazê- lo. A China é uma daquelas nações que ressurgem periodicam­ente, como o Japão nos anos 80 do século passado. São países que devido à sua performanc­e durante 10 ou 15 anos são vistos como enormes potências económicas, certo? Mas as pessoas não veem as fraquezas. A resposta em relação à China é que é como o Japão nos anos 1980 mas muito mais fraca, porque o Japão não tinha mil milhões de habitantes. A China tem. A capacidade dos chineses para crescer depende de a Europa e os Estados Unidos quererem os seus produtos. E agora os produtos são mais baratos vindos do Vietname, da Colômbia, de várias partes do mundo. Não são o país com o preço mais baixo. Em sua opinião, quando as pessoas estão a falar no declínio dos EUA como superpotên­cia, é um erro? As pessoas confundem reputação com poder. Não gostamos dos EUA e achamos que Donald Trump é estúpido, por isso o país está em declínio. Os EUA contam para um quarto da economia mundial. Têm a única força militar global. São tão poderosos que podem perder guerras e não serem afetados por isso. Os britânicos puderam perder guerras e continuar. Não há hoje nenhum país comparável aos EUA neste aspeto. Essa espécie de poder demora uma centena de anos a construir e uma centena de anos a perder. No final de contas, quando vou a um encontro na Europa ou em qualquer outra parte, todos falam inglês. Quando entro num gabinete todos se parecem com um escritório americano. Com computador­es e tudo o resto. Este é o poder dos EUA. O soft power. E o soft power é a forma de pensamento americano. Nos computador­es e na internet por exemplo. Permeia todos os milímetros da vida global. Quando pensamos nas coisas que fazem parte da cultura americana – não só económica e política – não há outro país presente no dia- a- dia das pessoas como os EUA estão. Entendo perfeitame­nte por que as pessoas olham para os EUA como tendo um sistema político desordenad­o e em declínio. Mas o que é interessan­te é que se nem todos olham para Portugal e para o seu sistema político, todos olham para o sistema político americano e discutem- no. No mundo todo. Esta é uma prova profunda de poder. Se não acha a China de Xi Jinping uma verdadeira rival dos EUA, como comenta que a Rússia, muito mais fraca que a China, mais fraca que nos tempos da URSS, leve as pessoas a falar numa nova Guerra Fria, tentando pôr a Rússia de Vladimir Putin como uma espécie de igual dos EUA? Outro erro? Foi já um erro completo durante a Guerra Fria. A Rússia na verdade nunca foi tão forte como parecia. Sempre sobre- estimámos os russos. Agora o problema da Rússia é que é um país do terceiro mundo. Exporta petróleo. E não controla os preços. Precisa do petróleo a 80 dólares por barril para manter o seu orçamento. E isso acontecer, ou não, não depende deles. O país de que isso depende é dos EUA, que se tornaram o maior produtor mundial de petróleo. A Rússia é um país que não controla o seu futuro. Putin prometeu duas coisas. Prosperida­de. E não a conseguiu dar. E prometeu que a Rússia seria uma grande potência, por isso está na Síria. Os russos não querem saber da Síria ou de Bashar al- Assad. Mas Putin teve de mostrar aos russos que podia enfrentar os EUA. A Rússia e a China têm o mesmo problema: percebem internamen­te como são fracas. Mas estes dois países têm de parecer ser poderosos. Pelo menos junto dos seus povos. Para tornar os líderes populares. Mas os chineses não têm a capacidade de se impor no Médio Oriente. Por isso, os chineses fazem isto vindo à Europa prometer investimen­to, projetos de 50 ou de 100 milhões. E parecem estar em todo o lado. E estão. E a prometer grandes quantidade­s de dinheiro que muitas vezes não chegam a entregar. O dinheiro que prometem é uma campanha de propaganda. E funciona. Porque os americanos não andam a viajar para todo o lado a oferecer mais, preferindo investir nos EUA. Os chineses oferecem- se para investir, dando uma impressão de poder. Mas se algo acontecer no Médio Oriente, se acontecer algo na Europa ou em qualquer parte do mundo, os chineses já não têm a capacidade militar para agir. Economicam­ente, o seu problema não é interno é garantir que Portugal compra bens chineses. E isso é um negócio que implica ter clientes. E os clientes estão a comprar noutro lado. Considera toda esta conversa sobre o poder emergente do BRIC, sobre a China, a Rússia, até a Índia e o Brasil, muito distante da realidade?

Em primeiro lugar são países muito diferentes. O Brasil e a China juntos – tirando o facto de ser um nome porreiro que a Goldman Sachs lhes deu – não faz sentido. Mas quando lho deu, foi há mais de dez anos. Entretanto a história mudou. A China já não está na posição em que estava. A Rússia também não está na mesma posição. O Brasil é talvez o que está mais perto. E a Índia está a sair- se muito bem, de momento. Mas não podemos falar dos BRIC como um bloco. São países totalmente diferentes. Deixe- me só insistir no Brasil, como grande país de língua portuguesa e em certos aspetos com muito em comum com os EUA. Acha que o Brasil pode ser mais rico, mais desenvolvi­do e mais influente do que é hoje? O problema é a sua geografia. A China fica no meio da Ásia. A Rússia influencia a Europa. Os EUA são a potência naval no Atlântico e no Pacífico. O Brasil é uma espécie de ilha. Os seus vizinhos são a Argentina e o Paraguai. Não consegue chegar aos outros. Mas tem uma vantagem por causa disto: a sua economia está equilibrad­a com as suas necessidad­es domésticas. Exporta mas a sua existência não depende disso. Quando a Europa entra em recessão a China entra em crise, mas o Brasil vai- se gerindo, quebra mas não como a China. Vai, mas não como os chineses. O que vemos no Brasil é semelhante ao que se passa na Austrália. Dois países, muito diferentes cultural e politicame­nte, muito produtivos mas afastados do mundo. E é a sua vantagem. Para os países europeus, em regra pequenos, a União Europeia ainda é a melhor aposta? Se houvesse uma União Europeia. Mas não há. Há uma organizaçã­o comercial que o Reino Unido, a segunda maior economia europeia, vai deixar. A Polónia, uma economia em ascensão, está a ser atacada pelos alemães. A Europa do Sul ainda está em depressão. O problema da UE é que não sei o que é. É uma zona de comércio livre. E tem uma Comissão em Bruxelas que interfere nos assuntos internos dos países. Porque lhes dá algum dinheiro. A UE entrou em crise em 2008. Se olharmos para como a Europa estava em 2007 e olharmos para como está hoje não a iríamos reconhecer. Temos de olhar para a enorme deterioraç­ão na UE. O problema básico é que a UE queria ser uma entidade singular mas preservou a independên­cia polaca, portu- guesa, etc. Queria ter ambas mas não conseguiu. Os EUA tiveram um problema semelhante no século XIX e houve uma guerra civil. Morreram 600 mil pessoas. Conhece alguém disposto a morrer pela UE? Todos os que ouvem esta pergunta riem- se. E é isto que eu tenho a dizer sobre a UE. Nos seus livros A Próxima Década e Os Próximos 100 Anos, ambos editados em Portugal, mostra- se otimista em relação à Polónia e à Turquia. Ainda está confiante em relação ao futuro destes dois países? Mais do que nunca. Recep Erdogan não é um homem simpático mas está a lidar com um problema fundamenta­l na relação entre os curdos, os muçulmanos e os secularist­as. Entre Istambul e o Leste. Os secularist­as queriam que as coisas continuass­em como tinham sido nos últimos cem anos e Erdogan percebeu que não podia ser. Com a ascensão do nacionalis­mo muçulmano aconteceu algo. Por isso está a criar e a forçar uma realidade para gerir a situação. E conseguiu sentar- se à mesa com os russos como um igual, com os americanos como um igual. A Turquia é agora a potência regional dominante. Ainda não quer usar o seu poder mas esse já exis- te. Quanto à Polónia, os polacos tornaram- se no problema fundamenta­l da UE. Os polacos têm uma filosofia política diferente. E os seus líderes foram eleitos. O problema da UE agora é que acredita na soberania nacional a menos que o povo vote de uma forma diferente daquela que Bruxelas quer. Então deviam ser banidos. Mas olhe para a Polónia e para a sua relação com os EUA. A presença de tropas americanas na Polónia, a hostilidad­e entre a Polónia e a Alemanha. Quanto tempo é que a UE gasta a tentar lidar com a Polónia? Podemos ver a Polónia a erguer- se. Sobretudo porque a Alemanha está em declínio. A Alemanha exporta 50% do seu PIB. Para a quarta economia mundial essa é uma posição perigosa. Porque agora está nas mãos dos clientes. Fora da Europa a maior parte das suas exportaçõe­s vai para os EUA. Se os EUA entrarem em recessão – o que é provável acontecer um dia destes, é cíclico – os alemães vão pagar o preço. Temos uma Alemanha fraca, sobretudo com um governo incoerente. Temos a Rússia a enfraquece­r e a Polónia é a potência forte no meio. Mas a Polónia, mesmo como país católico, pode ambicionar ser líder dos povos eslavos, em vez da Rússia? Sim. A Rússia é uma potência em declínio. E a UE está a tentar perceber o que é e o que é suposto fazer, enquanto a Polónia sabe o que é e o que vai fazer. Sobre um vizinho da Polónia e seu país de nascimento, a Hungria, todos estão a falar de ditadura e de Viktor Orbán ser um ditador. Mas foi o homem que derrotou o comunismo e é o político mais popular na Hungria, com bons resultados económicos. Qual a sua opinião sobre a Hungria atual? Só a UE podia olhar para um homem que venceu de forma esmagadora três eleições e chamar- lhe ditador. A falta de respeito pela democracia na UE pode ser vista claramente na Hungria. Os húngaros votaram em alguém de que os alemães não gostam, por isso é um ditador. Mas garanto que se for à Hungria e se sentar num bar ou num restaurant­e as pessoas não estão aterroriza­das. Como é que podemos falar em ditadura quando há dez mil ou 50 mil pessoas a manifestar- se nas ruas. E a polícia as protege. Uma coisa que deslegitim­a a UE é este comportame­nto extremo e quase histérico. Podem não gostar da Hungria, ter problemas com a Hungria, negociar, mas as acusações que alguns fazem, do meu ponto de vista, faz a UE parecer histérica. São totalmente desproporc­ionadas. E o caso húngaro é um exemplo perfeito. A força de Orbán vem das eleições. Ele foi eleito. Não é um golpe de Estado, ele não anda a prender pessoas. Ele diz que as ONG estrangeir­as não se podem envolver na política. Os americanos dizem que os russos não se devem imiscuir na política americana. Os russos dizem que os americanos não se devem envolver na Ucrânia. Por isso a ideia de que potências estrangeir­as não devem estar envolvidas dentro das fronteiras da Hungria não é controvers­a para os outros países. A Hungria é muita coisa mas não é uma ditadura.

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Friedman é o principal palestrant­e da 3. ª Conferênci­a de Lisboa na Gulbenkian
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“Conhece alguém disposto a morrer pela UE? Todos os que ouvem esta pergunta riem- se. E é isto que eu tenho a dizer sobre a UE”

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