Diário de Notícias

“Havia um rapazinho de 15 anos chamado Dedjen, chegado da Etiópia...”

- ANA SOUSA DIAS

“O Estado belga fez um acordo com o Sudão. Identifica­vam os refugiados políticos, que eram repatriado­s. No regresso, eram presos e torturados”

“As rusgas eram cada vez mais violentas e mais cedo. Eram presas as pessoas mais vulnerávei­s, menos capazes de correr. Pedimos alojamento aos belgas”

“Há 4500 pessoas que já acolheram alguém em casa, desde setembro, 2500 voluntário­s que transporta­m pessoas entre o parque e as casas”

Esta é uma entrevista com muitas pessoas dentro, feita em Lisboa quando Adriana veio mostrar ao namorado, Mehdi Kassou, o 25 de Abril em Portugal. Mehdi é belga e fundou em 2015 a Plateforme Citoyenne de Soutien aux Réfugiés, considerad­a pelo jornal Le Soir a entidade mais relevante de Bruxelas em termos sociais em 2017. Ela tinha acabado de chegar para um mês de voluntaria­do e integrou-se rapidament­e. Hoje é o rosto deste movimento de cidadãos que mobiliza com rapidez e eficácia milhares de pessoas. Como aconteceu assumir tanta relevância em tão pouco tempo? Cheguei a Bruxelas durante a crise de refugiados da Síria, do Iraque e do Afeganistã­o. Seguia a crise aqui em Portugal e pensei que seria interessan­te ir ver a realidade e fazer voluntaria­do. Comprei um voo de ida e volta de um mês mas percebi que era importante continuar lá. A questão das migrações sempre me interessou, dentro das Relações Internacio­nais. Como estava a fazer um ano sabático, fiquei durante o ano todo. O que estava a acontecer? Estavam a chegar 500 a 600 refugiados por dia e o centro de imigração não conseguia absorver todos os pedidos de asilo. As pessoas dormiam num parque, na rua. Juntaram-se cidadãos para lhes dar as necessidad­es básicas – comida, roupa, cuidados médicos, tendas para dormir. Entretanto, o Estado absorveu todos os pedidos e era importante acompanhá-las na aprendizag­em da língua, da cultura, preparar com advogados as entrevista­s no centro de imigração, e então entrámos numa fase de integração das pessoas que precisavam de casa, trabalho, escolas. E foram chegando mais pessoas? Sim, entretanto, houve o desmantela­mento do campo de refugiados de Calais. Vimos chegar centenas de pessoas – uma parte das 15 mil que viviam em Calais – que se tornaram imigrantes em trânsito entre a França, a Alemanha, a Bélgica, com o objetivo de chegar a Inglaterra. Em 2015 os Estados europeus recebiam os pedidos de asilo dos refugiados que chegavam, mas hoje todos os Estados tentam passar a responsabi­lidade para a Itália, através do Sistema de Dublin, que estipula que as pessoas que vêm pedir asilo na Europa devem fazê-lo no país de chegada. Vimos em 2015 que é possível aos Estados usarem a cláusula de soberania para aceitarem pedidos de asilo, e isso também faz parte do texto do Tratado de Dublin. Mas o governo belga é de extrema-direita e as únicas duas hipóteses que dá aos refugiados que chegam, a maior parte do Sudão, da Eritreia, da Etiópia, são voltar para Itália ou ser reenviados para a guerra. Como chegaram ao projeto de alojamento, em que as famílias de Bruxelas acolhem refugiados? Isso veio com a evolução da situação. A Plateforme é cidadã e voluntária, não tem subsídio do Estado, e tem uma liberdade de ação e adaptação à realidade que a distingue das outras ONG. No fim de 2016, conseguimo­s uma solução do Estado para alojar as pessoas, mas depois voltaram para a rua, para o Parque Maximilien, onde fazemos a maior parte do nosso trabalho. Voltaram porquê? Todos os anos funciona assim na Bélgica. Há o plano de inverno para alojar todos os sem-abrigo e no fim de abril todas as pessoas que usufruem dessas estruturas voltam para a rua. Os refugiados passaram a ser tratados como sem-abrigo? Sim. Mas o Estado belga fez um acordo com os serviços secretos do Sudão, um governo condenado por crimes contra a humanidade, e houve uma comitiva do Sudão que veio para a Bélgica identifica­r os refugiados políticos e dar apoio ao repatriame­nto, prendendo-os à chegada. Houve muitos a quem isso aconteceu e foram torturados à chegada ao Sudão. Mantêm contacto com eles? Estamos em contacto, através dos meios de comunicaçã­o e das redes sociais. No fim do verão de 2017, a Plateforme sabia que havia 400 ou 500 refugiados que dormiam no parque e a polícia começou a organizar rusgas, muito cedo, para os surpreende­r enquanto dormiam, prendê-los e fechá-los num centro para serem repatriado­s. Nós tínhamos recolhido numa semana dinheiro para comprar 500 sacos-cama. Os serviços de limpeza vinham a seguir

às rusgas e apanhavam tudo o que os refugiados deixavam quando fugiam. E o que fizeram? Criámos uma equipa que acordava toda a gente antes de a polícia chegar. As rusgas começaram a ser cada vez mais violentas e mais cedo. Eram presos sempre os mais vulnerávei­s, menos capazes de correr – mulheres, crianças, feridos, doentes, idosos. Lançámos um apelo pelo Facebook para conseguir alojamento para estas pessoas. Conseguimo­s mais ofertas do que o número de pessoas vulnerávei­s. Foi assim que propusemos às famílias belgas que alojassem todas as pessoas do parque. Eles dormem uma noite ou duas e depois tentam passar para Inglaterra? Tentam passar nos camiões, nas autoestrad­as, nos autocarros turísticos. Houve miúdos que morreram a saltar para camiões. Há toda uma rede de traficante­s de seres humanos. Como consegue dormir? É por estar a fazer alguma coisa que consigo dormir um bocadinho melhor. Fui parar a Bruxelas um bocado por acaso mas agora tenho uma vida lá, estou a tirar um mestrado e a trabalhar. O que fazemos é federar vontades. Muita gente me disse: “Obrigado pela oportunida­de de fazer alguma coisa, no fim do dia de trabalho posso fazer a minha parte, abrir a porta e proteger alguém.” O discurso político do medo e do terrorismo e o medo do desconheci­do transforma­m-se em algo humano, próximo, familiar. As pessoas falam do Akhmet que gosta de açúcar no café, do Mohamed que explicou ao filho onde era o Sudão. Torna-se fácil acolher o outro que não é assim tão diferente de nós. Quantas pessoas tem a vossa rede? Há 4500 pessoas que já acolheram alguém em casa, desde setembro, 2500 que são voluntária­s para conduzir pessoas até às casas dos que não podem vir ao parque. Há 40 mil pessoas que seguem a nossa página no Facebook. Há um espaço físico, uma sede? Temos três sítios principais, tudo em edifícios cedidos. Na Bélgica os proprietár­ios pagam mais impostos se tiverem edifícios desocupado­s. Na sede temos serviço de acompanham­ento social e administra­tivo, distribuiç­ão de roupas e de produtos de higiene, uma escola para as crianças e um espaço mulher. Temos o centro onde alojamos todas as noites 250 pessoas, com 150 voluntário­s por semana, e finalmente um hub humanitári­o com outras ONG – os Médicos do Mundo, os Médicos sem Fronteiras e a Oxfam, na Estação do Norte, onde há ajuda médica, saúde mental, distribuiç­ão de roupa, um serviço da Cruz Vermelha para encontrar familiares perdidos no caminho. Temos pessoas de todos os partidos políticos, deixou de ser uma questão de opinião, é uma questão humana. Qual foi a pior situação que viu? Penso em duas. Houve um rapaz que para mim ficou o símbolo das consequênc­ias da política migratória. Vi-o chegar a Bruxelas quando dávamos os primeiros passos no alojamento. Recebemos uma informação da polícia de que ia haver intervençõ­es em toda a cidade e durante todo o dia. Pedimos aos cidadãos para alojar as pessoas. Estava no parque, eram quatro da manhã, à espera de ver se ainda havia pessoas na rua. Havia um rapazinho de 15 anos, chamado Dedjen, chegado da Etiópia. Era o seu primeiro dia na Bélgica, estava completame­nte perdido. Quando falava com ele, chegou um carro da polícia. Meti-o no carro e pus um post no Facebook para alguém o receber. Semanas depois, uma senhora disse-me que ele tinha ficado em casa dela e continuava a tentar passar para Inglaterra. Meses mais tarde, avisou-me que não tinha notícias dele há uns dias. Foi encontrado morto numa estação de serviço, atropelado por um camião. Consegue contar a outra história? É preciso estar calmo e sorridente sempre, para ter o controlo da situação. Uma vez estava no parque com 400 pessoas à minha volta e vi uma menina chegar, também de 16 ou 17 anos, pequenina, um metro e meio, magrinha, não sei como é que alguém podia ousar pôr um dedo nela. Mostrou-me que tinha sido presa pela polícia com o namorado, o namorado tinha ficado preso, deixaram-na ir mas antes bateram-lhe. A prioridade era encontrar alguém para a alojar e proteger. Logo que entrou num carro e eu sabia que estava em segurança, perdi o controlo, as pessoas vinham falar comigo e eu não estava a perceber nada, completame­nte perdida.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal