A terceira geração do M68
A direita gaullista tremeu. Pensou que era de novo o perigo comunista. Damos sempre ao medo o nome do que conhecemos. O PCF abominou o M68, e assim que lhe foi possível devolveu os grevistas às linhas de produção. Em Praga, eram os velhos estalinistas que a juventude contestava, antes de os tanques de Brejnev a esmagarem em agosto
OMaio de 1968 (M68), iniciado precisamente há 50 anos nas ruas de Paris, é um daqueles acontecimentos que se prestam às mais bizarras e labirínticas interpretações. Quando se procura falar sobre esse mês que começou com ocupações de escolas e escaramuças estudantis, para se alargar a uma greve geral envolvendo dez milhões de trabalhadores, terminando tão subitamente como havia começado, corremos o risco da deriva frívola. A única coisa segura que posso destacar no M68 é a vitalidade e a intensidade energética desses acontecimentos: os atores que nas ruas enfrentavam a polícia pertenciam à terceira geração europeia nascida no século XX, a primeira cuja generosidade pulsional não foi imolada como carne para canhão. Os avós dos colegas de Cohn-Bendit devoraram-se na lama das trincheiras, enquanto os seus pais se arriscaram pelos campos de batalha e extermínio da II Guerra Mundial. O M68 não foi uma revolução, nem no sentido conservador de Edmund Burke de regresso a uma ordem anterior (como ele considerava a revolução inglesa de 1688), nem como o “assalto ao céu” leninista, em que uma vanguarda organizada arrebata pela violência o aparelho de Estado. Duas décadas de prosperidade económica ininterrupta, desde 1947, garantida por um capitalismo keynesiano que colocava o turbulento capital financeiro sob uma vigilância severa, tinham permitido romper com as sociedades da “mobilização total” (na escola, na fábrica, na caserna) da Europa da segunda guerra de trinta anos (19141945). O M68 não foi uma revolução, mas sim a explosão de uma nova categoria chegada aos palcos da história: um Eu pulsional, onírico, integrando não uma elite, também ela lapidada na disciplina da tradição, mas uma multidão juvenil, plural sem deus, nem chefe, nem ideologia, nem Palácio de Inverno para conquistar. Havia mais leitura de Wilhelm Reich, de Herbert Marcuse, dos “situacionistas”, como Guy Debord, do que dos clássicos da insurreição. Esse Eu jovem não tinha programa, mas sim múltiplas faces: era erótico, libidinoso até, completamente focado na descoberta hedonista do corpo como fonte inesgotável de experiências, desde a sexualidade sem restrições aos estupefacientes, considerados como veículos de “expansão da consciência”...
A direita gaullista tremeu. Pensou que era de novo o perigo comunista. Damos sempre ao medo o nome do que conhecemos. O PCF abominou o M68, e assim que lhe foi possível devolveu os grevistas às linhas de produção. Em Praga, eram os velhos estalinistas que a juventude contestava, antes de os tanques de Brejnev a esmagarem em agosto. É verdade que a Revolução Cultural chinesa, iniciada em 1966, aparecia referida nos cartazes e nas palavras soltas. Mas foi claramente um exemplo do lost in translation. Nada unia os jovens de Paris a um dos maiores monstros universais, Mao Tsé-tung, que se escudou atrás da imberbe Guarda Vermelha para se manter à frente de um partido que ousara criticá-lo por ter condenado a morrer à fome mais de 40 milhões de camponeses na loucura do Grande Salto em Frente (1958-1961).
O M68 marcou também o declínio do fascínio das narrativas marxistas, e nessa medida ajudou a iniciar a transição para a normalizada “condição pós-moderna” que Jean-François Lyotard descreveu em 1979. Além da memória de quem o viveu, talvez o mais visível sobrevivente do Maio de 1968 seja o estilo irreverente que a publicidade jamais perdeu. O fantasma de 68 agitase na incansável tarefa do marketing: acorrentar a liberdade do sujeito hedonista nos trabalhos de Sísifo do consumismo.