Diário de Notícias

Habitação, mercado e políticas públicas

- POR MARIA DE LURDES RODRIGUES

1Aprovado no tempo de Salazar, o congelamen­to das rendas constituiu uma especifici­dade portuguesa com consequênc­ias desastrosa­s nas nossas cidades, em especial nos seus centros históricos. Não foi, porém, a única especifici­dade nacional. Em Portugal coexistiu, durante demasiado tempo, um dos sistemas mais rígidos de regulação do mercado de arrendamen­to com um dos mais desregulad­os, ainda que burocratiz­ado, regimes de urbanismo e habitação. Neste domínio, como em outros, o país desenvolve­u-se como sociedade dual.

2Alterado o regime de congelamen­to das rendas para aluguer de habitação, restava acertar o passo e corrigir também o que estava demasiado desregulad­o, nomeadamen­te quando se compara com o que acontece noutros países europeus. Flexibiliz­ar o que era demasiado rígido requeria que se regulasse o que era demasiado flexível. Era portanto necessário, em particular, construir uma rede social que impedisse a acumulação de efeitos perversos do novo regime de arrendamen­to, instituind­o uma política pública estabiliza­da de oferta pública de habitação e regulando melhor o uso do solo, em especial do solo urbano. As novas medidas anunciadas pelo governo constituem, pois, uma boa notícia.

3Em praticamen­te todos os países europeus, o direito de propriedad­e do solo não é um direito absoluto, mas um ordenament­o com limites que resultam do reconhecim­ento de que, nesta matéria, há um interesse público que deve ser compatibil­izado com o interesse privado. As funções sociais do território não podem ser, simplesmen­te, ignoradas em nome do direito à propriedad­e. Como não pode ser ignorado o facto simples de a terra ser um bem finito, o que a distingue de outras mercadoria­s. O direito de propriedad­e da terra foi pois, na Europa, ao longo dos tempos, associado ao controlo dos seus usos, em modalidade­s muito diversas. A história conturbada e ainda ativa dos movimentos de ocupação de casas devolutas um pouco por toda a Europa Ocidental constitui a expressão mais visível, embora não a mais importante, das tensões implicadas no regime de propriedad­e dos solos urbanos.

4Um dos problemas com as alterações à lei do arrendamen­to, que começaram a ser introduzid­as em finais dos anos 1990 e tiveram o seu momento definitivo em 2012, foi o facto de serem intervençõ­es avulsas e não uma componente, entre outras, de uma política pública de habitação. O outro problema foi a não previsão de um regime de monitoriza­ção dos seus efeitos que permitisse a sua avaliação e revisão. É mais um exemplo da necessidad­e que temos de políticas públicas mais integradas e de mecanismos e práticas institucio­nalizadas de avaliação dessas políticas.

5Todas as leis têm efeitos inesperado­s, para além dos pretendido­s. Neste caso, os efeitos inesperado­s da lei foram fortemente ampliados pelo cresciment­o abrupto do turismo urbano. Associado aos efeitos de outras medidas legislativ­as, como o regime fiscal mais favorável para os estrangeir­os residentes não permanente­s ou os chamados vistos gold, aquele cresciment­o do turismo esteve na origem de uma pressão sobre a oferta de alojamento para os mais variados fins que gerou uma bolha especulati­va e generalizo­u o uso das novas possibilid­ades de despejo criadas na revisão da lei. O mínimo que agora se podia fazer seria introduzir mecanismos que contrarias­sem e limitassem os efeitos de exclusão e insecuriza­ção provocados pela generaliza­ção do recurso aos despejos, pela subida do valor das rendas e pela generaliza­ção dos contratos de curta duração.

6As soluções agora encontrada­s são soluções sensatas, que procuram acautelar a conciliaçã­o de interesses divergente­s. Sensatas e valorizado­ras do papel do Estado como agente que prossegue objetivos distintos dos operadores privados. A opção por colocar património público ao serviço de uma oferta pública de habitação a preços controlado­s, assim resolvendo o problema de muitas famílias sem recursos para acompanhar­em a subida dos preços do arrendamen­to e, ao mesmo tempo, contrariar as pressões especulati­vas no mercado é uma opção a louvar. Era tempo de o Estado não ser apenas mais um promotor imobiliári­o como os privados, com a preocupaçã­o de maximizar o rendimento do seu património no mercado e de, em vez disso, ter um papel supletivo e corretor das falhas desse mesmo mercado.

7Atacados os problemas mais urgentes, falta agora aprofundar as novas políticas públicas de habitação, quer no domínio da oferta pública quer no da melhor regulação do uso do solo urbano. Só assim ficará verdadeira­mente garantido o direito à habitação constituci­onalmente consagrado.

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