Habitação, mercado e políticas públicas
1Aprovado no tempo de Salazar, o congelamento das rendas constituiu uma especificidade portuguesa com consequências desastrosas nas nossas cidades, em especial nos seus centros históricos. Não foi, porém, a única especificidade nacional. Em Portugal coexistiu, durante demasiado tempo, um dos sistemas mais rígidos de regulação do mercado de arrendamento com um dos mais desregulados, ainda que burocratizado, regimes de urbanismo e habitação. Neste domínio, como em outros, o país desenvolveu-se como sociedade dual.
2Alterado o regime de congelamento das rendas para aluguer de habitação, restava acertar o passo e corrigir também o que estava demasiado desregulado, nomeadamente quando se compara com o que acontece noutros países europeus. Flexibilizar o que era demasiado rígido requeria que se regulasse o que era demasiado flexível. Era portanto necessário, em particular, construir uma rede social que impedisse a acumulação de efeitos perversos do novo regime de arrendamento, instituindo uma política pública estabilizada de oferta pública de habitação e regulando melhor o uso do solo, em especial do solo urbano. As novas medidas anunciadas pelo governo constituem, pois, uma boa notícia.
3Em praticamente todos os países europeus, o direito de propriedade do solo não é um direito absoluto, mas um ordenamento com limites que resultam do reconhecimento de que, nesta matéria, há um interesse público que deve ser compatibilizado com o interesse privado. As funções sociais do território não podem ser, simplesmente, ignoradas em nome do direito à propriedade. Como não pode ser ignorado o facto simples de a terra ser um bem finito, o que a distingue de outras mercadorias. O direito de propriedade da terra foi pois, na Europa, ao longo dos tempos, associado ao controlo dos seus usos, em modalidades muito diversas. A história conturbada e ainda ativa dos movimentos de ocupação de casas devolutas um pouco por toda a Europa Ocidental constitui a expressão mais visível, embora não a mais importante, das tensões implicadas no regime de propriedade dos solos urbanos.
4Um dos problemas com as alterações à lei do arrendamento, que começaram a ser introduzidas em finais dos anos 1990 e tiveram o seu momento definitivo em 2012, foi o facto de serem intervenções avulsas e não uma componente, entre outras, de uma política pública de habitação. O outro problema foi a não previsão de um regime de monitorização dos seus efeitos que permitisse a sua avaliação e revisão. É mais um exemplo da necessidade que temos de políticas públicas mais integradas e de mecanismos e práticas institucionalizadas de avaliação dessas políticas.
5Todas as leis têm efeitos inesperados, para além dos pretendidos. Neste caso, os efeitos inesperados da lei foram fortemente ampliados pelo crescimento abrupto do turismo urbano. Associado aos efeitos de outras medidas legislativas, como o regime fiscal mais favorável para os estrangeiros residentes não permanentes ou os chamados vistos gold, aquele crescimento do turismo esteve na origem de uma pressão sobre a oferta de alojamento para os mais variados fins que gerou uma bolha especulativa e generalizou o uso das novas possibilidades de despejo criadas na revisão da lei. O mínimo que agora se podia fazer seria introduzir mecanismos que contrariassem e limitassem os efeitos de exclusão e insecurização provocados pela generalização do recurso aos despejos, pela subida do valor das rendas e pela generalização dos contratos de curta duração.
6As soluções agora encontradas são soluções sensatas, que procuram acautelar a conciliação de interesses divergentes. Sensatas e valorizadoras do papel do Estado como agente que prossegue objetivos distintos dos operadores privados. A opção por colocar património público ao serviço de uma oferta pública de habitação a preços controlados, assim resolvendo o problema de muitas famílias sem recursos para acompanharem a subida dos preços do arrendamento e, ao mesmo tempo, contrariar as pressões especulativas no mercado é uma opção a louvar. Era tempo de o Estado não ser apenas mais um promotor imobiliário como os privados, com a preocupação de maximizar o rendimento do seu património no mercado e de, em vez disso, ter um papel supletivo e corretor das falhas desse mesmo mercado.
7Atacados os problemas mais urgentes, falta agora aprofundar as novas políticas públicas de habitação, quer no domínio da oferta pública quer no da melhor regulação do uso do solo urbano. Só assim ficará verdadeiramente garantido o direito à habitação constitucionalmente consagrado.