… Nem rabo de fora (II)
Mantido em suspenso, há uma semana, o que à mostra poderia ter ficado do muito do gato que se esconde entre as linhas (e sobretudo fora delas) do acordo rubricado entre PS e PSD quanto a uma suposta descentralização, eis-nos de regresso ao tema.
Por razões de actualidade e de exigência do tema, de inabilidade do autor ou porque as palavras são como as cerejas, cá estamos para aduzir o que, com propriedade, faltara no texto aqui publicado e se justifica preencher.
Revelada no artigo anterior a dimensão do felino, novos elementos, incluindo os que por via de declarações foram, entretanto, adicionados, confirma-se que, apesar do esforço dos envolvidos para manter disfarçado o rabo do bicho (com as antecipadas desculpas pelo vernáculo do termo ainda que sem contestação anatómica) este vai assomando para lá do que o recipiente do texto subscrito entre governo e PSD contém.
Atente-se no que declarou Álvaro Amaro, negociador social-democrata, embalado pelo inebriante acordo: «Se os sábios concluírem que a regionalização é melhor, os partidos que decidam.» Registese o sentido profundo da asserção: a atribuição ao círculo de sapientes criaturas, que darão corpo à anunciada “comissão Independente”, o poder de concluir se a Constituição da República deve ser para valer ou ignorar. Para começo não está mal. Saúde-se, entretanto, esta lhaneza de espírito, esta revelação, ainda que descuidada na origem, para se perceber ao que andam os expedicionários desta cruzada centralista. Assim não fosse e não se ficaria a conhecer o que, também por via de esclarecedora e peremptória afirmação, Álvaro Amaro confessa sobre as negociações com o governo PS: «Garanto que a regionalização nunca esteve em cima da mesa.» Em duas penadas a tela descentralizadora salta da moldura. Ninguém, com um mínimo de seriedade, olhará para uma efectiva descentralização sem ins- crever a regionalização como parte constituinte. Não só por imperativo constitucional, mas por força do que, em si, é chamada a representar na organização democrática do Estado e da administração: na definição de uma delimitação de competências entre os vários níveis da administração (competências que, não tendo como espaço de exercício adequado o nível central, também não o encontram no plano local); na afirmação e defesa da autonomia do poder local (é conhecido que a relação imposta por entidades desconcentradas da administração central sem legitimidade democrática tem constituído factor de ingerência nas autarquias locais); na racionalização e organização da administração pública e dos seus serviços.
Poder-se-ia ainda aduzir, para lá da substância, o desabrido recurso no plano do estilo e da forma. Anote-se o atropelo do processo de avaliação que se arrasta sem respostas cabais do governo às questões suscitadas pela ANMP quanto à fundamentação e comprovação das condições e meios que deviam habilitar a um exame sério e rigoroso das competências a transferir. Percebe-se porquê: a divulgação rigorosa daquela informação desvendaria (como já desvendou nos poucos casos em que foi revelada) que aquilo que se prepara é uma transferência de encargos, de subfinanciamento e subinvestimento. A título de exemplo: a transferência de património cultural a maior parte acompanhada das verbas gastas pelo Ministério da Cultura no ano anterior, ou seja, zero euros; a indicação de um valor por quilómetro para a desclassificação de estradas nacionais que é metade do proposto há seis anos; valores risíveis para manutenção, conservação e funcionamento de escolas secundárias ou centros de saúde que agravarão o subfinanciamento e subinvestimento já hoje patente. Para alívio das responsabilidades dos governos e tormento das autarquias e das populações.
E anote-se ainda a transformação da Assembleia da República em mera chancelaria do negócio agora firmado entre PS e PSD, definindo condições, ritmos e forma de concretizar o que caberia ao Parlamento decidir. O recurso à forma verbal do condicional não é em vão. É que, na verdade, aquilo que agora foi rubricado é um verdadeiro cheque em branco dado pelo PSD ao governo, uma vez que os diplomas sectoriais que estabelecerão as condições concretas de cada área a transferir serão 22 decretos-leis inteiramente redigidos por aparo governamental.
Na gula da sinalização política que os autores quiseram assegurar por via do acordo se dissolve a coerência e a solidez deste processo. Mesmo no limitado domínio que assume, mera transferência de encargos, o resultado é o que se vê: um regime em que a partir do menu de competências a transferir, os municípios escolhem as que desejem exercer, passando a ser imperativas para o conjunto das autarquias no horizonte de quatro anos. Um género de universalidade facultativa, de pesca à linha com enquadramento legal. No casuísmo e arbítrio da solução se desfaz a falsa ideia reformadora com que a coisa se apresenta.
É caso para se dizer, ainda que com substituição cénica do gato, que se albarde o burro à vontade do dono.
Na verdade, aquilo que agora foi rubricado é um verdadeiro cheque em branco dado pelo PSD ao governo, uma vez que os diplomas sectoriais que estabelecerão as condições concretas de cada área a transferir serão 22 decretosleis inteiramente redigidos por aparo governamental