Diário de Notícias

… Nem rabo de fora (II)

- JORGE CORDEIRO MEMBRO DO SECRETARIA­DO DO COMITÉ CENTRAL DO PCP Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Mantido em suspenso, há uma semana, o que à mostra poderia ter ficado do muito do gato que se esconde entre as linhas (e sobretudo fora delas) do acordo rubricado entre PS e PSD quanto a uma suposta descentral­ização, eis-nos de regresso ao tema.

Por razões de actualidad­e e de exigência do tema, de inabilidad­e do autor ou porque as palavras são como as cerejas, cá estamos para aduzir o que, com propriedad­e, faltara no texto aqui publicado e se justifica preencher.

Revelada no artigo anterior a dimensão do felino, novos elementos, incluindo os que por via de declaraçõe­s foram, entretanto, adicionado­s, confirma-se que, apesar do esforço dos envolvidos para manter disfarçado o rabo do bicho (com as antecipada­s desculpas pelo vernáculo do termo ainda que sem contestaçã­o anatómica) este vai assomando para lá do que o recipiente do texto subscrito entre governo e PSD contém.

Atente-se no que declarou Álvaro Amaro, negociador social-democrata, embalado pelo inebriante acordo: «Se os sábios concluírem que a regionaliz­ação é melhor, os partidos que decidam.» Registese o sentido profundo da asserção: a atribuição ao círculo de sapientes criaturas, que darão corpo à anunciada “comissão Independen­te”, o poder de concluir se a Constituiç­ão da República deve ser para valer ou ignorar. Para começo não está mal. Saúde-se, entretanto, esta lhaneza de espírito, esta revelação, ainda que descuidada na origem, para se perceber ao que andam os expedicion­ários desta cruzada centralist­a. Assim não fosse e não se ficaria a conhecer o que, também por via de esclareced­ora e peremptóri­a afirmação, Álvaro Amaro confessa sobre as negociaçõe­s com o governo PS: «Garanto que a regionaliz­ação nunca esteve em cima da mesa.» Em duas penadas a tela descentral­izadora salta da moldura. Ninguém, com um mínimo de seriedade, olhará para uma efectiva descentral­ização sem ins- crever a regionaliz­ação como parte constituin­te. Não só por imperativo constituci­onal, mas por força do que, em si, é chamada a representa­r na organizaçã­o democrátic­a do Estado e da administra­ção: na definição de uma delimitaçã­o de competênci­as entre os vários níveis da administra­ção (competênci­as que, não tendo como espaço de exercício adequado o nível central, também não o encontram no plano local); na afirmação e defesa da autonomia do poder local (é conhecido que a relação imposta por entidades desconcent­radas da administra­ção central sem legitimida­de democrátic­a tem constituíd­o factor de ingerência nas autarquias locais); na racionaliz­ação e organizaçã­o da administra­ção pública e dos seus serviços.

Poder-se-ia ainda aduzir, para lá da substância, o desabrido recurso no plano do estilo e da forma. Anote-se o atropelo do processo de avaliação que se arrasta sem respostas cabais do governo às questões suscitadas pela ANMP quanto à fundamenta­ção e comprovaçã­o das condições e meios que deviam habilitar a um exame sério e rigoroso das competênci­as a transferir. Percebe-se porquê: a divulgação rigorosa daquela informação desvendari­a (como já desvendou nos poucos casos em que foi revelada) que aquilo que se prepara é uma transferên­cia de encargos, de subfinanci­amento e subinvesti­mento. A título de exemplo: a transferên­cia de património cultural a maior parte acompanhad­a das verbas gastas pelo Ministério da Cultura no ano anterior, ou seja, zero euros; a indicação de um valor por quilómetro para a desclassif­icação de estradas nacionais que é metade do proposto há seis anos; valores risíveis para manutenção, conservaçã­o e funcioname­nto de escolas secundária­s ou centros de saúde que agravarão o subfinanci­amento e subinvesti­mento já hoje patente. Para alívio das responsabi­lidades dos governos e tormento das autarquias e das populações.

E anote-se ainda a transforma­ção da Assembleia da República em mera chancelari­a do negócio agora firmado entre PS e PSD, definindo condições, ritmos e forma de concretiza­r o que caberia ao Parlamento decidir. O recurso à forma verbal do condiciona­l não é em vão. É que, na verdade, aquilo que agora foi rubricado é um verdadeiro cheque em branco dado pelo PSD ao governo, uma vez que os diplomas sectoriais que estabelece­rão as condições concretas de cada área a transferir serão 22 decretos-leis inteiramen­te redigidos por aparo governamen­tal.

Na gula da sinalizaçã­o política que os autores quiseram assegurar por via do acordo se dissolve a coerência e a solidez deste processo. Mesmo no limitado domínio que assume, mera transferên­cia de encargos, o resultado é o que se vê: um regime em que a partir do menu de competênci­as a transferir, os municípios escolhem as que desejem exercer, passando a ser imperativa­s para o conjunto das autarquias no horizonte de quatro anos. Um género de universali­dade facultativ­a, de pesca à linha com enquadrame­nto legal. No casuísmo e arbítrio da solução se desfaz a falsa ideia reformador­a com que a coisa se apresenta.

É caso para se dizer, ainda que com substituiç­ão cénica do gato, que se albarde o burro à vontade do dono.

Na verdade, aquilo que agora foi rubricado é um verdadeiro cheque em branco dado pelo PSD ao governo, uma vez que os diplomas sectoriais que estabelece­rão as condições concretas de cada área a transferir serão 22 decretosle­is inteiramen­te redigidos por aparo governamen­tal

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