Diário de Notícias

O meu dia são todos os dias

- FERREIRA FERNANDES

Odia da minha casa vai ser amanhã. Hoje vou escrever sobre a minha casa e, amanhã, 5 de maio, a minha casa sendo assunto vasto, quem quiser pode voltar a ler-me sobre o Dia da Língua Portuguesa. Entretanto, quero ir às origens, aos meus caboucos.

Às vezes penso que vivo a 5875 quilómetro­s da minha casa – meço-os como os prisioneir­os contam os dias e os rabiscam nas paredes da cela. A minha casa, o lugar onde pela primeira vez pensei “cheira a café”, antes de saber dizer “cheira” e “café” e antes de saber que aquele solitário “a” era a primeira das vogais. E antes, também, de saber o que eram vogais.

E muito menos, claro, ainda antes de saber soletrar “torrefação”, afinal o ato que me sugeriu aqueles factos iniciais e os transformo­u em sons e estes iam correspond­endo a imagens e sentires. Acontecia a três quarteirõe­s da minha casa, ao fundo da rua da Missão de São Paulo, numa outra casa térrea, pintada a cal, com rodapé de azul ultramarin­o que impedia os insetos de subir pelas paredes. Duas vezes por semana, pela manhã, tiravamse grãos de sacos de ráfia, e torravam-nos. A brisa vinda da baía de Luanda trazia-me aquele saber que eu continuava a não saber mas que me levou um dia a pensar pela primeira vez: “Cheira a café.” Ouvi de quem o mistério? Certamente de alguém que morava na minha casa e participav­a no milagre da minha língua.

Quando lá volto, à minha casa, à minha língua, confundo tudo. À casa, que já não reconheço, acontece-me passar e não dar por ela, onde era jardim fronteiro, construíra­m uma tosca casota de cimento. Volto atrás e sei que estou na minha casa, sem os canteiros de beijos de mulata e dálias da minha mãe e o ferro forjado da varanda está enferrujad­o. A mulher negra que me viu passar olha para mim regressado. Interroga-me sem nada dizer. “Vivi aqui”, digo-lhe. Não lhe digo “vivo aqui”, ela não tem nada que saber das minhas coisas íntimas. Ela sorri, compreende­u: “Quer entrar?” E logo: “Não quer um café?” Contornei a casota de cimento e entrei na casa onde pela primeira vez pensei na palavra “café”. Dei-me conta que ela disse a mesma palavra que eu, da primeira vez que pensei nela, não a sabia dizer. Como não ver na mulher uma vizinha, por mais que habi- tualmente haja 5875 quilómetro­s a separar-nos?

Entro na sala de jantar e não estão lá, evidenteme­nte, nem o ovo de avestruz nem o olho verde do rádio Grundig. Só está lá o que não estava quando eu vivia na casa onde sempre vivo: o cofre pesado e verde, com o círculo metálico que esconde um segredo. Alguém carregou o cofre do escritório e as chaves o meu pai trouxera-as para Portugal. Agora, nem para armário serve, com a porta teimosamen­te trancada desde que os meus pais partiram, há tantos anos. O cofre separa-nos, como a vida nos separou, a mim e à minha anfitriã. Ela insiste em unir-nos: “Fui que que fiz o bordado”, diz. Mostra-o, com buraquinho­s geométrico­s, redondo, em cima do cofre inútil e mudo. E ela e eu fomos nós outra vez por causa da palavra bordado.

Tenho a idade do meu pai, sou muito mais velho que a minha mãe quando me encaminho para o quintal. E logo recuo, está todo cimentado, sem árvores nem terra. A Fifi, que desapareci­a meses, terra dentro, e reaparecia para saborear filosofica­mente uma folha de alface, um dia, ao regressar ao quintal, deve ter encontrado carapaça maior do que a sua: “Nunca viu um cágado por aqui?” A senhora olha-me, triste. Cada vez me compreende melhor. Ela talvez nunca tenha visto a Fifi mas conhecia a palavra cágado.

Estou ainda na minha rua e ligo o telemóvel, quero dizer, preciso de dizer à minha filha que estou na minha casa. Um rapaz, gentil, nem espera que o telemóvel se desligue, oferece-me um embrulho: “Chefe, quer um aparelho de medir tensão?” Um quê?, digo. Responde-me, pedagógico: “Aparelho de medir tensão. É sempre interessan­te ter um em casa.” Digo-lhe que não quero aparelho de medir a tensão. Falamos como falantes que se entendem, até os absurdos falados.

A minha casa é vasta, meto-me à estrada. A minha casa tem litanias que parecem equipa de futebol saudosa: Catete, Calomboloc­a, Barraca, Maria Teresa... Até Maria Teresa alinha bem. Zenza do Itombe, a avançado-centro, passa a Golungo Alto... Antes, Cassoalala. Parava-se em Cassoalala na pensão do velho Leal. A caldeirada de macaco do velho Leal de Cassoalala... O que eu gostava de ser lembrado, assim: o meu nome, a minha casa, um feito meu. Meus a recordarem-se que um dia eu deixei as palavras que a caldeirada de macaco serve. Mesmo já não havendo caldeirada de macaco, só esses sons.

Atravesso Xele, como diz uma placa na estrada, batizando a povoação a letras negras: “XELE”. Vou sozinho no carro e sorrio. Vou tão contente comigo e com eles, a pequena multidão que cruzo, de quitandeir­as, polícias e camponeses... Eu sei e eles não precisam de saber, vamos juntos, até porque não nos precisamos de prevenir que estamos juntos. Xele fica pouco antes da Quibala e, em tempos em que eu tinha casa, havia lá uma bomba de gasolina da Shell. Eu continuo a ter casa, porque a minha casa não se perde, transforma-se em sons.

A minha casa que se transforma em sons dos outros que por isso são meus

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