Diário de Notícias

PELA AMÉRICA DO TIO SILVA LINO AMARAL O LUSODESCEN­DENTE QUE TENTA CONCILIAR SILICON VALLEY E AS FESTAS DO ESPÍRITO SANTO

Califórnia. A história de Lino Amaral, um lusodescen­dente de segunda geração em luta para rejuvenesc­er e manter ativa nos Estados Unidos a comunidade portuguesa e as tradições de outros tempos

- PAULO TAVARES, em Dublin, Califórnia

Lino Amaral num jantar de gala da comunidade portuguesa, no pavilhão ao lado da Igreja das Cinco Chagas, em San Jose. Éramos muito provavelme­nte os mais novos nas muitas mesas decoradas com o rigor de um momento solene. Alguns dias depois sentámo-nos à conversa e falámos desse envelhecim­ento da comunidade, ou melhor, dos portuguese­s e lusodescen­dentes que por aquela zona da Califórnia ainda teimam em manter vivas as tradições.

Já no seu gabinete de CEO da LUSO Financial (cargo que deixou entretanto) – uma associação mutualista que serve há mais de um século como rede de proteção social para a comunidade portuguesa nas duas costas dos Estados Unidos – começou por contar a sua história. Nasceu ali, na Califórnia, tal como a mãe, e o pai chegou à América na vaga de emigração de final dos anos 1950, na ressaca da erupção do vulcão dos Capelinhos, no Faial.

Os avós maternos eram do continente. “O meu avô de Aveiro e a minha avó de São Brás de Alportel. Mas o meu pai veio diretament­e do Faial em 1959 depois dos Capelinhos (n.d.r. - erupção em 12 setembro de 1957).” A história do lado materno é mais rica de América. “A minha avó veio com 7 anos, em 1927. Os meus bisavôs já cá tinham estado e o meu avô veio com 18 anos.”

Não foram tempos fáceis para esse lado da família. Chegaram à Califórnia a tempo da grande depressão e Lino pode dizer do avô materno, com orgulho, que “foi militar aqui, esteve na Segunda Guerra Mundial”. Terminada a guerra, o avô de Lino Amaral começou um negócio. “Tinha um pequeno mercado – não era um supermerca­do, era pequeno, uma mercearia. Vendia coisas de casa e álcool, cerveja, vinho e coisas assim.” Um traço comum já corria na família – a dedicação

à memória eà tradição portuguesa­s .“Ele sempre esteve muito envolvido na comunidade. Pertencia a um grupo chamado ‘os continenta­is’, que também era um grupo fraternal. É engraçado, naquele tempo havia muitos grupos, mas era raro os continenta­is irem às festas dos açorianos. Mas os meus avós começaram a ir e tinham lá amigos. Foi aí que o meu pai achou a minha mãe.”

“I don’t know if you want more details

about my avós…” A conversa foi correndo assim, num português escorreito, entremeado de expressões e frases em inglês, e uma opção reveladora. Sempre que tinha uma história mais intrincada ou engraçada para contar, Lino mudava para o inglês. “Dá mais jeito”, dizia. Sim, queremos mais detalhes dos avós. “O meu avô nasceu em 1917 e chegou em 1934 ou35àCalif­órn ia. Viveram em Antioque, queépertod aqui, mas aloja deles era em Richmond.” Foi em Richmond que Lino Amaral nasceu, uma região onde a presença portuguesa não era muito forte.

Pergunto sobre a relação com a língua. Nãoénor mal alguém de segunda geração falar um portuguêst­ã odes enrascado .“A razão porque eufal opor tuguê sé a minha mãe. Ela foi nascida aqui, mas numa casa portuguesa. O meu avô, o pai dela, sempre disse: ‘Olha, estás na América, somos americanos agora, mas tens… you know, you gotta have that connection, aquela ligação à nossa nacionalid­ade, Portugal.’ And so, when I grew up… ehhh… em casa era sempre português e tenho uma irmã que ainda fala melhor do que eu e canta o fado e tudo.”

O gabinete onde falamos, na sede da LUSO na costa oeste, em Dublin, a meio caminho entre Oakland e San Jose, tem as paredes decoradas com dois grandes temas – fotos de desporto e de momentos de festa e celebração da comunidade portuguesa. Lino Amaral foi um jovem tipicament­e americano, mas com fins de semana um pouco diferentes. Na escola e depois, na universida­de, prati- cou basebol, futebol americano e atletismo, mas quando chegava ao sábado, a vida mudava. “Sempre estive envolvido na comunidade. Toquei numa banda filarmónic­a, dancei num grupo folclórico... Ao fim de semana a comunidade portuguesa era a minha vida. Do lado do meu pai eram 13 irmãos, nove vieram para a Califórnia. Era um birthday aqui, um aniversári­o na outra semana e sempre estivemos envolvidos nas festas do Espírito Santo. Isso era natural para mim.”

Lino explica que nos tempos da universida­de tinha duas vidas separadas. A vida académica, tipicament­e americana, e os fins de semana em português. “Os meus amigos mais chegados sabiam que eu fazia umas ‘coisas portuguesa­s’ aos fins de semana, mas a maior parte das pessoas não sabia porque, e esConheci

“Um dia, uma jovem já bemsucedid­a – tinha vendido a sua

startup – perguntou-me ‘o que é que vou fazer às festas? Há lá quem invista na minha empresa?’”

tamos a falar do início dos anos 1980…, Deus me livre se usasse uma T-shirt com a bandeira de Portugal ou da seleção portuguesa.” Naquele tempo “era um bocadinho diferente porque não havia internet e, na área em que eu vivia, quase ninguém conhecia os portuguese­s. Éramos poucos, mais dispersos, não era como San Jose. Os meus amigos diziam sempre ‘so, you have a portuguese convention this weekend’, tudo era um ‘portuguese convention”.

Regressa ao inglês para contar um embaraço da juventude. “Um dia, numa sexta-feira, tive de ficar a trabalhar até mais tarde na mercearia e tinha combinado com os meus amigos encontrarm­o-nos em minha casa. Atrasei-me e quando cheguei a minha mãe estava a mostrar-lhes os vídeos do programa de teatro do LUSO para jovens.” De novo em português, conta o desenlace da história já com a cara a sorrir. “E na televisão lá estava eu, dançando à moda da Nazaré, com as calças para cima, um colete verde e o barrete à nazareno... e eles todos ali, sentados no sofá, a rirem. Andaram os tempos que só diziam: ‘Oh man, what’s that?! You dress up in funny clothes!’. Eu fiquei levado do diabo com a minha mãe, ela sabia que a minha vida portuguesa era um segredo.” Eram vidas completame­nte separadas e a explicação, para um jovem recém-entrado na universida­de, é óbvia: “Quando tocas numa filarmónic­a, um belo dia estás a desfilar no meio da rua com calças e sapatos brancos a tocar um trompete… nesse ano o espetáculo tinha tido a Nazaré como tema. E lá estava eu com as calças arregaçada­s, descalço a desfilar e a dançar.”

É quando entra na vida ativa que passa a dedicar ainda mais tempo à comunidade. E é então que nota uma mudança na forma como os amigos olhavam para ele e para os seus fins de semana. “Foi engraçado. Todos aqueles meus amigos que estavam lá em casa naquela noite começaram a ficar com inveja. Viam que eu tinha raízes, eu tinha uma cultura de origem, que eles não tinham.” Assim, de repente, parecia que era cool ser português. “Eles diziam: ‘Isso é fixe, tu tens uma cultura, tens raízes. Nós fazemos sempre as mesmas coisas, todos os fins de semana’.”

Lino Amaral tem três filhos, com 22, 20 e 9 anos e tem tentado manter tradições e o português como língua lá de casa. Não é fácil, mas com o mais velho já teve uma surpresa. “Há quatro anos estivemos no Pico e eu mandei o meu filho levar o lixo à rua. Aquilo é perto, dois minutos para lá chegar e mais dois para voltar. Ele nunca mais voltava. Espreitei pela janela e estava a falar com um velhote que estava lá no sítio. Eu não fazia ideia de que ele falava português daquela maneira… esteve mais de 15 ou 20 minutos à conversa”. O filho tinha uns 17 anos e mal falava português em casa, na América. “Quando voltou, perguntei: ‘Mas, o velhote falava inglês?’ E ele disse ‘Não! Eu falo português, pai.’ Eles têm orgulho em serem portuguese­s. Ele usa uma camisola da seleção portuguesa quase todos os dias. Nem sequer gosta de futebol, não é do Benfica ou do Sporting… mas, adora usar aquela camisola.”

Portugal está na moda, mas a comunidade portuguesa na Califórnia corre o risco de não conseguir aproveitar essa onda. As instituiçõ­es estão a envelhecer e as novas gerações já não têm a mesma ligação às tradições e a Portugal. “É um dos grandes desafios” agarrar as novas gerações. “Quando chegam aos 18 anos, vão para a faculdade, vão trabalhar e vão à procura de saber quem são. Deixamos de ter controlo. Por isso, depende muito da forma como eles ficam ligados às nossas tradições.”

E depois há problemas bastante práticos. “Em San Jose, por exemplo, o Benfica, o Sporting e as irmandades, todas têm edifícios para gerir e para teres um edifício tens de ter uma direção disposta a trabalhar, e isso obriga a que, a uma terça-feira, a uma quarta-feira, vás para lá trabalhar pro bono. É tudo voluntaria­do, toma-nos tempo e acho que é cada vez mais difícil encontrar malta nova para participar.” Lino Amaral faz as contas à disponibil­idade dos mais de 300 mil lusodescen­dentes na Califórnia. “Estamos sempre a lutar para conseguir mobilizar as pessoas. O problema é que ficamos sempre na nossa bolha. Acho que devíamos apertar a malha da nossa rede, para tentar apanhar mais pessoas. Continuamo­s a fazer o mesmo que sempre fizemos e não ‘apanhamos’ mais pessoas, como os novos emigrantes das tecnológic­as, por exemplo.”

É quase uma missão impossível, ligar dois mundos tão distantes. “Eles não têm nada a ver com o tipo de eventos que a nossa comunidade organiza, não querem saber. Um dia, uma jovem já muito bem-sucedida – tinha vendido a sua primeira startup – perguntou-me ‘o que é que eu vou lá fazer? Há por lá alguém que possa investir na minha empresa?’ São muito pragmático­s. Por isso, a questão é como conquistam­os sangue novo para a comunidade e, ao mesmo tempo, conseguimo­s que eles sejam aceites pelos velhotes.” Lino Amaral está entre esses dois mundos e não vê como resolver o problema sem magoar as gerações mais velhas. “Eu não vou discutir isto com o meu pai, por exemplo. Como é que lhe vou dar cabo da paixão que ele tem na organizaçã­o destes eventos mais tradiciona­is, dizendo-lhe que têm de passar a fazer tudo de outra forma? Ele veio para aqui com 17 anos, num barco, sozinho, com uma mala pequena. Tinha toda a vida dele dentro daquela mala… como é que vamos conseguir uma ligação entre estes dois polos?”

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Lino Amaral, no seu gabinete de CEO da LUSO Financial – cargo que deixou no final do ano passado –, com as paredes carregadas de memórias da comunidade e recordaçõe­s de outra das suas paixões, o basebol

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