Diário de Notícias

A corrupção e suas variedades

- POR ANTÓNIO BARRETO Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o.

Omais provável é que o PS esteja a caminho do fim. Não por causa da adesão ao mercado nem pelo seu entusiasmo com a frente de esquerda. Mas sim por causa da corrupção, que o PS nunca condenou claramente, sobretudo a sua e a dos seus amigos. O caso Sócrates, a que se acrescenta­ram tantos outros, está agora a mostrar contornos difíceis de apagar da memória. O caso PT, bem anterior, já tinha deixado feridas e cicatrizes profundas. Os casos Pinho e EDP, que ainda agora vão no adro, revelaram-se de tal maneira letais que será difícil convencer quem quer que seja que membros deste governo não tiveram nada que ver com o governo Sócrates, nesta que é talvez a maior derrota da democracia desde há mais de 40 anos.

O PS não está a tratar da “espuma dos dias” nem de pequenas circunstân­cias, como sejam o pagamento a dobrar de ajudas de custo e outras “bagatelas”. O PS está a ocupar-se de uma questão muito séria: a do seu envolvimen­to em processos de corrupção política de grande escala e a do seu silêncio diante da actuação dos seus dirigentes. Com a corrupção, o PS está a tratar da sua natureza contemporâ­nea, não apenas de uma circunstân­cia excepciona­l.

O PS nunca foi muito claro na sua atitude perante a corrupção. Condenou a dos seus adversário­s, fez o possível por disfarçar a sua. Ou garantir que eram apenas casos de justiça. Pior: desculpou a corrupção com uma ideologia barata, a da ética republican­a! O que isso quer dizer é estranho. Como se houvesse uma ética monárquica. E uma ética socialista. Até uma ética fascista! Está a ver-se onde isto vai parar. Mas a ideia leva-nos a admitir que há várias espécies de ética e de corrupção.

Um dos problemas mais interessan­tes da corrupção é o de que os seus responsáve­is nunca acham que são corruptos. Julgam que estão a comportar-se com direiteza e valores inatacávei­s. Isto resulta de uma concepção própria de corrupção e de ética.

A ética aristocrát­ica faz que certas pessoas pensem honestamen­te que tudo lhes é devido, que estão acima de todos e de qualquer suspeita, que são charneiras da pátria e depositári­as do destino nacional! Aqueles gestos e valores que muitos consideram imorais são, para as classes altas, antigas e modernas, direitos adquiridos. Corre-lhes no sangue uma espécie de moralidade pública indelével que nem sequer é preciso provar. A sua legitimida­de é a do seu sangue.

A ética burguesa faz que pessoas, geralmente empresário­s e gestores, acreditem cegamente no mercado, considerem que merecem uma recompensa pelo que fazem, pelo emprego que criam, pelas exportaçõe­s que promovem e pelas obras que fazem para o Estado. Por isso, querem fazer o que lhes apetece. Julgamse agentes e instrument­os de bemestar da população. Zelam pelos direitos das empresas e acreditam em que tudo o que fazem é para criar riqueza. Por isso querem ser recompensa­dos. O que é bom para eles é bom para o país. A sua legitimida­de é a da sua obra.

A ética republican­a é a que remete os valores para a cidadania, rejeita privilégio­s de nome, fortuna e condição, mas atribui méritos desmedidos ao contributo para a democracia partidária. Tudo o que for feito a favor dos partidos no poder local, nos governos e em respeito pelo eleitorado, faz parte dessa ética republican­a. Que permite a corrupção do dia-adia, os empregos para os amigos, as comissões para os partidos, o financiame­nto público das campanhas eleitorais, as leis feitas por medida, os descontos e os favores... A sua legitimida­de é a do seu eleitorado.

Finalmente, a ética revolucion­ária, que critica todas as anteriores, que estipula como valores supremos a classe trabalhado­ra e o papel do seu partido de vanguarda. Tudo o que for feito, incluindo roubo, ocupação, assalto, despedimen­to, saneamento e favores, a bem da classe e do partido, cabe na moral trabalhado­ra. Com uma condição: a de nunca ser individual! Terá sempre de ser colectivis­ta, do partido, do sindicato... É essa a razão pela qual há tão poucos comunistas envolvidos em casos de corrupção: é o próprio partido que assegura as mais eficazes funções de polícia de costumes. Proventos individuai­s no movimento comunista, nunca! A sua legitimida­de é a da luta de classes e das relações de força.

Com a corrupção, o PS está a tratar da sua natureza contemporâ­nea, não apenas de uma circunstân­cia excepciona­l

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