O campo é igual à cidade, tirando que fica mais longe, e se calhar isso é o mais importante de tudo: estar longe
coisas, o iluminado até quer que o campo recupere alguns métodos mais antigos, que eles, sim, eram modernos e se mantêm muito mais modernos do que essa bandalheira kitsch em que o campo, entretanto, se quer transformar.
No fundo, é isto: o iluminado não é apenas o último garante dos valores do campo, dos verdadeiros valores do campo, mas tem de garanti-los apesar daqueles que sempre viveram no campo. O iluminado, mesmo sendo urbano, é muito mais do campo do que os do campo, e agora manda a responsabilidade que os vá guiando com sentido de missão, que isto a vida não são só telenovelas, ailerons do
e jogos Santa Casa. É por isso que, quando usa expressões como – sei lá – “costume popular”, já de si algo perturbadoras, o iluminado as usa apenas no biquinho da boca, como que com os dedos unidos em pinça, num esgar de nojo que lhe empresta uma sibilação afectada à pronúncia, “populáss”. É de tal ordem a condescendência do iluminado sobre os homens e os hábitos e os apreços do campo que só tem paralelo na admiração que os adoradores do campo têm pelos seus homens, hábitos e apreços – e às vezes acontece mesmo os iluminados e os adoradores coincidirem na pessoa, embora em momentos diferentes da vida.
O iluminado tem a mania que é bom, e é isso que me irrita. O iluminado põe-me a dizer que alguém “tem a mania”, como dizem os do campo, e é isso – definitivamente – que me irrita.
Nunca vi ninguém usar tantas vezes expressões como “ponto final parágrafo”, tão cheio de certezas absolutas, como o iluminado. Por outro lado, pergunto-me se se trata mesmo de certezas absolutas ou, mais prosaicamente, de uma comovente insegurança. O facto é que nunca encontrei uma tão obsessiva procura da virtude, um tão cabal moralismo, como encontro no inseguro urgente de se validar e, afinal, desprovido de qualquer espécie de paz.
Eu nunca procurei a virtude no campo, acho. Ou talvez tenha procurado. Mas a minha experiência já durou tempo o suficiente para chegar a aprender que a virtude deve ser a última das minhas preocupações. Bem vistas as coisas, não há qualquer virtude em viver onde vivo e como vivo: há até algum egoísmo. Ganho menos dinheiro, mas gasto menos dinheiro. Não tenho cinema, mas tenho um pomar. As experiências de vida são menos diversas, mas de resto estou-me nas tintas.
Ao fim de seis anos, sei isto: o campo, como a cidade, tem gente boa e gente má, invejas e solidariedades, idiotas chapados e génios absolutos, homicidas em potência, bons samaritanos e super-heróis. As pessoas são em regra mais interessantes do que parece, mas na cidade, olhando-as bem, é a mesma coisa.
O campo é igual à cidade, tirando que fica mais longe, e se calhar isso é o mais importante de tudo: estar longe. Estar um pouco mais livre, inclusive da necessidade da virtude – eis o privilégio que o iluminado ainda não percebeu.