Diário de Notícias

Pedalar para a frente

- JOÃO TABORDA DA GAMA

Na semana passada acabei por falar muito do Campo Grande mas nada do modo como lá cheguei, nem do homem mal encarado que alugava motas e bicicletas junto à Alameda da Universida­de onde andava sempre muita chungaria a fazer cavalinhos para a frente e para trás. Queria ir de bicicleta, mas a Gira não chega aqui ao meu bairro e por isso tive de ir de mota. Lá fiz o download da aplicação da eCooltra e dirigi-me à mota mais perto de casa. Lá estava ela, única, à minha espera, algum espertalhã­o a pensar que ia pegar nela mais tarde mas eu já a tinha fisgado.

Mas a app não funcionava, ainda não estava ativa e fiquei naquele limbo existencia­l da modernidad­e que é o espaço entre fazermos uma coisa e a coisa ficar ativa – e pode demorar até 24 horas, mas pode ser menos, dizem sempre as senhoras ao telefone –, e nós ali arrependid­os de termos feito uma coisa que ainda não está ativa, pelo menos os apressados como eu que olham para aquelas 24 horas possíveis como uma prisão perpétua sem possibilid­ade de suicídio. Mas na aplicação da eCooltra havia uma hipótese de salvar a coisa, que era ligar para lá e confirmar os dados. A assistente brasileira deu-me as boas-vindas, ativou o sistema, eu confirmei os dados, e ainda me deu 20 minutos grátis e dava mais se eu trouxesse os meus amigos para a rede. Tudo bem, tudo rápido, perguntou se eu podia aguardar em linha para avaliar o serviço, claro, mas a chamada caiu e por isso os 20 valores para a assistente brasileira vão por aqui pelo jornal, na esperança de que tenham os efeitos merecidos no seu fim de mês.

Peguei na mota e lá fui,Valentino Rossi do Toys “R” Us a fingir que acelerava, mas aquilo não anda nada, nem barulho faz, mas melhor assim, que mantive a integridad­e corporal. O objetivo também não era andar de mota, que era aqui meta-meio de transporte para chegar ao outro meio. Procurei um bairro mais nobre onde houvesse Giras, que aqui em Marvila ainda a Gira não chega, se eu fosse de esquerda dizia que era preconceit­o contra a freguesia mais pobre de Lisboa, que não há Giras porque não há francesas giras. Mas vai haver Giras das com maiúscula porque a junta aqui é PS e tenho a certeza de que não se vai calar enquanto não obrigar a EMEL a instalar umas docas aqui na zona oriental, pelo menos estendendo as da Expo até aqui – claro que na Expo há Giras, que lá não faltam giras. Também por isto cada vez acredito mais que a fronteira de Lisboa é Marvila e não o Parque das Nações.

Nas fronteiras, nos limites, nas pontas, nas margens é que vale a pena estar, lá onde se está mais perto do que não se conhece, não se tem, não se sabe. Mas fronteira não é país desconheci­do, courela perdida. Fronteira tem ainda lá o lado de cá, o familiar, conhecido. Tem risco – fronteira é risco, é traço – mas é também guarida que abriga e guarita que vigia. E no transporte, a fronteira é a bicicleta, mais do que a perna e menos do que a gasolina, único momento em que a liberdade é possível porque conquistad­a por si a pulmão e glúteo (queria escrever aquele músculo da parte de trás da perna em baixo, mas já ando aqui há tempo demais em sites de anatomia e de ginásios, e isto baralha-me o algoritmo e não quero andar a semana toda a receber anúncios de proteína).

Andar de bicicleta é dos maiores prazeres que se pode ter, e como a liberdade que dá é doce, gentil, sem se impor, abrindo a vida a trilhos secretos, sensações de fora, mas sempre e só ao ritmo do nosso fôlego e com dois travões, um de cada lado. A Gira é uma boa experiênci­a, um modelo de bike sharing clássico, com docas de ancoragem fixas, pedala bem e, nas zonas onde está presente, a distribuiç­ão é completa e bem pensada.

Mas a cidade não pode ter apenas um modelo de bike sharing. A liberdade de escolha e de deslocação dos munícipes e visitantes impõe que as Giras convivam com modelos de utilização dockless, em que as bicicletas podem ser apanhadas e largadas em qualquer lado, desde logo nos bairros onde por alguma razão não há, ou ainda não há, Giras. As câmaras devem ter um papel a dizer sobre esses quaisquer lugares onde podem ser largadas, mas deve ser meio A5 dobrado, pequenino, reduzido ao essencial, e assim se espera que seja o resultado do que se vai lendo que Lisboa está a preparar sobre a partilha de bicicletas, e tudo leva a crer que o será. Em Londres, o Transport for London escreveu dez páginas (Dockless bike share code of practice For Operators in London). Diz-se lá no meio que as apps devem ter informação sobre as regras de condução. Andei a olhar para o nosso Código da Estrada. Fazer, ou sacar, cavalinhos, ou éguas, tirar as mãos do volante, ou os pés dos pedais numa bicicleta dá multa de 30 a 150 euros (não? lê o artigo 90.º).

Sendo provável a entrada em Portugal de empresas como Jump, ofo, Mobike, Limebike (além da oBike que já opera), e estando o car sharing a todo o vapor, e havendo eCooltras por todo o lado, o governo aprovou nesta semana em Conselho de Ministros legislação sobre a matéria do sharing de veículos de passageiro­s com e sem motor. Sejam as “centauresa­s transpirad­as” do poema de Vinicius de Moraes, sejam as belezas de rabo gordo que fazem o mundo girar da música dos Queen, sejamos meros nós a devir para o trabalho (como nos segundos finais dos operários a sair da fábrica de Lyon dos irmãos Lumière), o que a cidade precisa é de enxames de ciclistas a circular e de carros parados nas garagens e nos stands, autocarros menos cheios, menos poluição, mais modernidad­e e sofisticaç­ão. Só se espera que Marcelo Rebelo de Sousa não se lembre agora de fazer como fez com a lei da Uber, e vetar o decreto-lei da partilha de motas e bicicletas desta vez em honra do negócio do homem que alugava bicicletas e motas no jardim do Campo Grande.

Só se espera que Marcelo Rebelo de Sousa não se lembre de fazer como fez com a lei da Uber, e vetar o decreto-lei da partilha de motas e bicicletas em honra do negócio do homem que as alugava no jardim do Campo Grande

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal