Pedalar para a frente
Na semana passada acabei por falar muito do Campo Grande mas nada do modo como lá cheguei, nem do homem mal encarado que alugava motas e bicicletas junto à Alameda da Universidade onde andava sempre muita chungaria a fazer cavalinhos para a frente e para trás. Queria ir de bicicleta, mas a Gira não chega aqui ao meu bairro e por isso tive de ir de mota. Lá fiz o download da aplicação da eCooltra e dirigi-me à mota mais perto de casa. Lá estava ela, única, à minha espera, algum espertalhão a pensar que ia pegar nela mais tarde mas eu já a tinha fisgado.
Mas a app não funcionava, ainda não estava ativa e fiquei naquele limbo existencial da modernidade que é o espaço entre fazermos uma coisa e a coisa ficar ativa – e pode demorar até 24 horas, mas pode ser menos, dizem sempre as senhoras ao telefone –, e nós ali arrependidos de termos feito uma coisa que ainda não está ativa, pelo menos os apressados como eu que olham para aquelas 24 horas possíveis como uma prisão perpétua sem possibilidade de suicídio. Mas na aplicação da eCooltra havia uma hipótese de salvar a coisa, que era ligar para lá e confirmar os dados. A assistente brasileira deu-me as boas-vindas, ativou o sistema, eu confirmei os dados, e ainda me deu 20 minutos grátis e dava mais se eu trouxesse os meus amigos para a rede. Tudo bem, tudo rápido, perguntou se eu podia aguardar em linha para avaliar o serviço, claro, mas a chamada caiu e por isso os 20 valores para a assistente brasileira vão por aqui pelo jornal, na esperança de que tenham os efeitos merecidos no seu fim de mês.
Peguei na mota e lá fui,Valentino Rossi do Toys “R” Us a fingir que acelerava, mas aquilo não anda nada, nem barulho faz, mas melhor assim, que mantive a integridade corporal. O objetivo também não era andar de mota, que era aqui meta-meio de transporte para chegar ao outro meio. Procurei um bairro mais nobre onde houvesse Giras, que aqui em Marvila ainda a Gira não chega, se eu fosse de esquerda dizia que era preconceito contra a freguesia mais pobre de Lisboa, que não há Giras porque não há francesas giras. Mas vai haver Giras das com maiúscula porque a junta aqui é PS e tenho a certeza de que não se vai calar enquanto não obrigar a EMEL a instalar umas docas aqui na zona oriental, pelo menos estendendo as da Expo até aqui – claro que na Expo há Giras, que lá não faltam giras. Também por isto cada vez acredito mais que a fronteira de Lisboa é Marvila e não o Parque das Nações.
Nas fronteiras, nos limites, nas pontas, nas margens é que vale a pena estar, lá onde se está mais perto do que não se conhece, não se tem, não se sabe. Mas fronteira não é país desconhecido, courela perdida. Fronteira tem ainda lá o lado de cá, o familiar, conhecido. Tem risco – fronteira é risco, é traço – mas é também guarida que abriga e guarita que vigia. E no transporte, a fronteira é a bicicleta, mais do que a perna e menos do que a gasolina, único momento em que a liberdade é possível porque conquistada por si a pulmão e glúteo (queria escrever aquele músculo da parte de trás da perna em baixo, mas já ando aqui há tempo demais em sites de anatomia e de ginásios, e isto baralha-me o algoritmo e não quero andar a semana toda a receber anúncios de proteína).
Andar de bicicleta é dos maiores prazeres que se pode ter, e como a liberdade que dá é doce, gentil, sem se impor, abrindo a vida a trilhos secretos, sensações de fora, mas sempre e só ao ritmo do nosso fôlego e com dois travões, um de cada lado. A Gira é uma boa experiência, um modelo de bike sharing clássico, com docas de ancoragem fixas, pedala bem e, nas zonas onde está presente, a distribuição é completa e bem pensada.
Mas a cidade não pode ter apenas um modelo de bike sharing. A liberdade de escolha e de deslocação dos munícipes e visitantes impõe que as Giras convivam com modelos de utilização dockless, em que as bicicletas podem ser apanhadas e largadas em qualquer lado, desde logo nos bairros onde por alguma razão não há, ou ainda não há, Giras. As câmaras devem ter um papel a dizer sobre esses quaisquer lugares onde podem ser largadas, mas deve ser meio A5 dobrado, pequenino, reduzido ao essencial, e assim se espera que seja o resultado do que se vai lendo que Lisboa está a preparar sobre a partilha de bicicletas, e tudo leva a crer que o será. Em Londres, o Transport for London escreveu dez páginas (Dockless bike share code of practice For Operators in London). Diz-se lá no meio que as apps devem ter informação sobre as regras de condução. Andei a olhar para o nosso Código da Estrada. Fazer, ou sacar, cavalinhos, ou éguas, tirar as mãos do volante, ou os pés dos pedais numa bicicleta dá multa de 30 a 150 euros (não? lê o artigo 90.º).
Sendo provável a entrada em Portugal de empresas como Jump, ofo, Mobike, Limebike (além da oBike que já opera), e estando o car sharing a todo o vapor, e havendo eCooltras por todo o lado, o governo aprovou nesta semana em Conselho de Ministros legislação sobre a matéria do sharing de veículos de passageiros com e sem motor. Sejam as “centauresas transpiradas” do poema de Vinicius de Moraes, sejam as belezas de rabo gordo que fazem o mundo girar da música dos Queen, sejamos meros nós a devir para o trabalho (como nos segundos finais dos operários a sair da fábrica de Lyon dos irmãos Lumière), o que a cidade precisa é de enxames de ciclistas a circular e de carros parados nas garagens e nos stands, autocarros menos cheios, menos poluição, mais modernidade e sofisticação. Só se espera que Marcelo Rebelo de Sousa não se lembre agora de fazer como fez com a lei da Uber, e vetar o decreto-lei da partilha de motas e bicicletas desta vez em honra do negócio do homem que alugava bicicletas e motas no jardim do Campo Grande.
Só se espera que Marcelo Rebelo de Sousa não se lembre de fazer como fez com a lei da Uber, e vetar o decreto-lei da partilha de motas e bicicletas em honra do negócio do homem que as alugava no jardim do Campo Grande