EURICO REIS: “HÁ MODERNICES QUE O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL NÃO CONSEGUE ACOMPANHAR”
Demitiu-se em protesto contra o acórdão do Tribunal Constitucional (TC) que declarou inconstitucionais diversas normas da lei de gestação de substituição, as chamadas barrigas de aluguer… E não só. Declarou inconstitucionais várias normas da lei da procriação medicamente assistida (PMA). Por favor, por uma questão de gentileza, não usem a expressão barrigas de aluguer na minha presença, digam gestação de substituição. As pessoas habituam-se, se ouvirem muitas vezes “gestação de substituição”… Reparem que a própria gestante remunerada, que é a situação fáctica que é descrita por essa expressão politicamente motivada, é uma pessoa que nos deve também merecer o maior respeito, é um ser humano como os outros, é uma mulher como as outras que, por razões várias, opta por fazer esse trabalho de ceder o seu útero a troco de dinheiro, mas, independentemente de tudo isso, é uma pessoa que nos deve merecer o maior respeito. Voltando à sua decisão de se demitir. Disse na altura que não concordava com aquela solução, que era “um desastre completo”, e que “o TC usou argumentos muito perigosos”. Pode explicar-nos onde está o perigo? O perigo tem que ver com a conceção política e ideológica que está subjacente a este acórdão, que é uma noção fechada de família, uma noção limitativa, se calhar até totalitária relativamente à liberdade das pessoas. Mais do que a fundamentação, são as consequências desta deliberação que me levaram a agir desta forma e a continuar a agir. Aparentemente tenho um processo disciplinar do qual ainda não fui notificado, o que é muito interessante, ao fim destes dias todos continuo sem receber a notificação. Isso é por causa de uma entrevista? Eu não sei, não faço a mínima ideia, não sei do que é que estou a ser acusado. Eu acho que as pessoas no Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) já me conhecem há tanto tempo que deviam ter a obrigação de saber que não é isso que me vai calar. Ainda por cima tendo em conta as consequências trágicas deste acórdão – é desastroso, terrível, cruel até. As consequências desta deliberação vão ser cruéis para muita gente. Para já há uma questão que eu gostava de sublinhar, que foi a que motivou uma expressão muito forte da minha parte nessa tal entrevista, e que foi não ter sido impedida a produção de efeitos retroativos. Mesmo nos países onde aconteceu esta mudança de a dádiva deixar de ser anónima e os dadores passarem a estar obrigados a ser conhecidos, a lei ou a decisão judicial, como foi o caso dos Estados Unidos, salvaguardou sempre as situações jurídicas já constituídas. Há constitucionalistas que dizem que esse papel está agora na mão dos deputados que poderão fazer essa ressalva quando alterarem a lei. Têm de fazer. Concorda com isso? Completamente. O TC devia ter feito
isso, porque o simples facto de não ter dito logo, preto no branco, que os efeitos eram só para o futuro, faz que haja transferências embrionárias que estavam previstas e que de 24 de abril para cá tiveram de ser canceladas por causa disso. Quantos tratamentos é que deixaram de ser feitos por causa disso? Está a dizer que não havia necessidade de voltar ao Parlamento só por causa desse ponto se isso tivesse sido acautelado nesta decisão? Exatamente. O Parlamento vai ter de reiniciar o processo legislativo e eu acho que vai impor esse limite, ou seja, a produção de efeito vai ser só a partir de 24 de abril, para trás tem de ser salvaguardado, porque senão isso seria, como eu disse na altura, um golpe de Estado. Seria afrontar de uma maneira que eu nem adjetivo as próprias noções essenciais da Constituição. O TC, ao declarar inconstitucionais essas normas do artigo 15.° relativas ao sigilo, fez lei, escreveu, porque o efeito da declaração de inconstitucionalidade é de apagar a lei, portanto aquela lei, aquele artigo concreto, é como se nunca tivesse existido, o que significa que o TC reescreveu a lei. Há uma norma na Constituição que diz que os direitos, liberdades e garantias não podem ser limitados com efeitos retroativos. E isso aconteceu efetivamente com esta decisão? Aconteceu, porque neste momento há um hiato, há um completo vazio. É óbvio que nenhum diretor de centro – e o CNPMA também não fez isso na última reunião em que eu estive presente – vai afrontar o TC e fazer uma interpretação do acórdão; as únicas pessoas que podem fazer qualquer coisa relativamente ao acórdão são os senhores deputados, que são os representantes do povo, só eles é que vão poder mexer. Enquanto não houver legislação nova, o que vale é este acórdão. O que é que acontece a alguém que queira descobrir quem é o seu dador – de um caso passado, obviamente –, como é que o caso é tratado durante esse hiato? É outra das inconstitucionalidades, digamos assim, do acórdão. Em Portugal há cronicamente falta de dadores; mas são 30 anos, 30 anos de trabalho – já agora perguntem ao Conselho quantas crianças é que nasceram no ano passado com dádivas de gâmetas, ou de ovócitos, ou de embriões provenientes de dadores, esse será o número de crianças que não vão nascer neste ano. Agora tem de se perguntar a essas pessoas, porque foi o que o Conselho disse, antes de se fazer qualquer coisa, se querem que as dádivas delas sejam utilizadas em tratamentos. O que pode acontecer, se o legislador não for célere, é que vão ser destruídos embriões, porque se os dadores disserem que não querem que as suas dádivas sejam utilizadas porque não querem correr o risco de daqui a uns anos o seu nome ser divulgado, esse material é para destruir. A questão é esta: pode haver material genético que vai ser destruído se o legislador não fizer uma limitação aos desastres decorrentes deste acórdão. Respondendo à pergunta: para já vai continuar a haver crianças, e é por isso que eu falo em inconstitucionalidade, há aqui uma desigualdade injustificada; como muitas das crianças nasceram por dádivas vindas do estrangeiro, de países onde o sigilo existe, não pode haver leis portuguesas a sobrepor-se às outras. Brincamos, não? Portanto, não há hipótese de essas pessoas, esses seres humanos saberem quem é o dador. E no caso de um dador português? No caso de um dador português, tem de se dirigir ao centro de PMA e pedir para saber quem é. Como é que o Parlamento pode melhorar este tipo de legislação, ou seja, limitar os danos da decisão do TC? Alguns podem ser limitados, como é o caso da questão da confidencialidade. Pode também dizer que sim senhor, dadores identificados, mas também pode haver a hipótese de haver dadores não identificados, exatamente por esta razão que eu já disse, que é a de que na prática vai haver seres humanos que não vão poder ter esta informação. Acho que o Parlamento pode manter a possibilidade de dadores anónimos. Essa opção seria do dador? Exatamente. Mas há coisas que têm de ser feitas, nomeadamente: o TC achou que o CNPMA tinha poderes a mais e não podia tê-los. Portanto, tudo aquilo que estava nos artigos, nomeadamente no n.º 3, que tem que ver com a tal densificação que não havia, que não eram definidos os critérios… Há três ou quatro ideias... por exemplo, diz que há demasiada indeterminação na lei, contratos demasiado vagos, fala da possibilidade de a gestante poder arrepender-se até ao final da gestação… Essa é uma das desgraças. ... de quem é a criança se o contrato for considerado nulo, o direito de a criança saber quem são os dadores e a gestante. Tudo isto põe em causa o quê? Quando falava em “desastre completo”, o que é que tinha na sua cabeça de concreto? O desastre completo é este de os tratamentos terem parado todos, todos os que implicam o recurso a dádivas. Isto é uma desgraça completa, porque a infertilidade é uma doença que se agrava à medida que o tempo passa. Isto é verdade até para as mulheres que não são inférteis, pois a cada dia que passa têm menos uma hipótese de engravidar. Os efeitos da biologia são cruéis porque cada dia que passa menos hipóteses as mulheres têm de engravidar. Portanto, quanto mais tempo este vazio existir, menos hipóteses temos de nascerem crianças, e isso é o pior. Relativamente a este problema até há uma solução muito engraçada: a proposta do Conselho que depois acabou por ter acolhimento pelos deputados até previa uma situação em que se o contrato fosse nulo a gestante ficaria como a mãe registal da criança; isso foi afastado pelos deputados do PSD por muito boa razão. É o casal beneficiário que tem um projeto parental, eles é que estão prontos. Neste momento o que acontecia era que não havia essa indeterminação, era claro: “A criança que nascer com recurso à gestação de substituição é tida como filha dos respetivos beneficiários”, ou seja, é sempre tida, mesmo quando o contrato é nulo. Se alguém me perguntar, uma das sugestões que eu vou fazer é tornar isto mais interessante: os contratos deixam de ser nulos, passam a ser anuláveis para não haver tanta indeterminação, estabelece-se um prazo para ser requerida a declaração de anulabilidade – três anos, por exemplo. A nulidade de um contrato pode ser invocada a qualquer momento, a anulabilidade tem um prazo, portanto daqui até pode sair alguma coisa de bom. Essa obrigação de que a gestante pode arrepender-se já depois do nascimento da criança não mata a gestação de substituição, mas quase. O casal beneficiário vai estar com uma espada em cima da cabeça até ao nascimento da criança, e eu acho que isso é injusto. O que seria preciso fazer era uma lei que eliminasse essas coisas que eu acho completamente erradas e não fundamentadas e arranjar maneira de não haver deputados suficientes para apresentarem o pedido de declaração de inconstitucionalidade no TC. Se não houvesse um conjunto de deputados do PSD – o PSD é realmente um partido muito interessante; 24 corajosos homens e mulheres que votaram a favor dos direitos e das aspirações de pessoas em sofrimento e depois outros que se juntaram ao CDS para destruir isto tudo. Portanto, se não houvesse esse número de deputados do PSD, a lei não tinha ido ao TC. O senhor Presidente da República, com todas as dúvidas, assinou-a, o que quer dizer que para ele também era constitucional porque senão mandava-a ele para o TC. Agora estou a pensar, por exemplo, na lei do suicídio assistido, que muito provavelmente será aprovada, mas depois se houver alguém que a manda para o TC, não sei o que é que vai acontecer. Essa era a primeira hipótese. A segunda é esperar sete ou oito anos para que os juízes que lá estão cessem o seu mandato e depois ponham lá outros. Nessa altura poderão ser corrigidos esses aspetos que eu acho que são injustificados. Se eles fossem corrigidos agora pelo Parlamento, em que situação ficaria o TC e as pessoas que o integram? Eu acho que as pessoas já podem ter neste momento alguma opinião sobre o TC. Se isso acontecesse, e eu duvido que aconteça, seria um conflito entre dois órgãos de soberania. Mas em caso de conflito, do meu ponto de vista, é óbvio que prevalecem aqueles que são os representantes mais diretos do povo. Será útil criar esse conflito? É capaz de não ser. Eu estive 11 anos próximo de
“Por favor, por uma questão de gentileza, não usem a expressão barrigas de aluguer na minha presença, digam gestação de substituição”
“A conceção política e ideológica que está subjacente a este acórdão é uma noção fechada de família, uma noção limitativa, se calhar até totalitária relativamente à liberdade das pessoas”
“Perguntem ao Conselho quantas crianças é que nasceram no ano passado com dádivas de gâmetas, ou de ovócitos, ou de embriões provenientes de dadores, esse será o número de crianças que não vão nascer neste ano”
pessoas em sofrimento, os inférteis. Eu também tenho muito respeito pelas lésbicas e pelas mulheres sem parceiro e parceira, mas essas até têm a vida mais facilitada, porque se encontrarem um amigo que não se importa de mais tarde poder ter algumas complicações, vão bater à porta das clínicas privadas porque as públicas têm lista de espera, e dizem: “Eu quero ser inseminada com o esperma deste meu amigo que não se importa de ser dador.” Se quer que lhe diga, este acórdão até facilitou bastante a vida das lésbicas e das mulheres sem parceiro, mas as inférteis continuam a ter problemas. É óbvio que eu estou mais próximo dessas pessoas, não porque eu seja infértil mas porque as conheço. Sou solidário, fraterno com elas e, portanto, estou um bocadinho mais chateado. Mas o meu lado mais racional diz que seria desagradável criar este conflito. Considera que houve aqui uma visão moralizadora, ou moralista, do TC? Sim, sim. No fundo, há certas modernices que muita gente não consegue acompanhar. Mas, mais do que o TC, o que verdadeiramente me deixa fora de mim é um conjunto de pessoas – com coisas que eu já ouvi e vi escritas na sequência da decisão do TC – que mostram uma frieza, uma desumanidade, uma indiferença ao sofrimento destas pessoas. Porque estas pessoas estão em sofrimento, mesmo em sofrimento, aliás, devem ser elas a falar porque eu não as posso representar, posso ser amigo delas, ajudá-las, mas não as posso representar. E depois há pessoas que mostram uma alegria feroz por destruírem os sonhos desta gente que para mim só têm uma classificação: não são humanas. O que é que estas pessoas estão a dizer? De certa forma, o TC di-lo de uma forma um pouco mais civilizada, e é isto: “Vocês têm de aguentar, não conseguem ter filhos? Azar, conformem-se.” Se fosse assim não tínhamos medicamentos, não tínhamos operações, não tínhamos nada do que nos prolonga a vida em termos de tempo e de qualidade, morríamos aí aos 30 ou aos 45 anos. É isso que se quer? Não. E o TC de certa forma diz isto, impõe uma visão ideológica que não é a que foi perfilhada pela maioria dos deputados no Parlamento. Claro que eles têm o direito – eu utilizo muito esta expressão: os guardas que ninguém guarda –, as sociedades têm de ter estes guardas que ninguém guarda, mas o que temos é de ter muito cuidado na escolha das pessoas que vão para esses lugares, com todos os juízes em geral e os juízes do TC em particular, ainda por cima porque têm um poder de determinação do comportamento dos outros que ainda é maior do que o dos outros juízes. Ainda assim não são cargos vitalícios como noutros sistemas. Sim, mas também nesses outros sistemas a forma de eleição é capaz de ser um bocadinho diferente… É política. E esta é o quê? Também é. Ah, bom. Mas a posição do TC é esta: só há uma forma de constituir família, só há uma forma de as pessoas se reproduzirem, e conformem-se. E esses tais cruéis e desalmados dizem ainda pior: “Ponham à borda. Estão a sofrer? Não gostam? Ponham à borda!” O Tribunal Constitucional diz só: “Conformem-se!”, o que para mim já é suficientemente violento. Aliás, estas histórias fazem-me sempre lembrar aquela afirmação do Brecht em que ele diz que toda a gente diz que o rio é violento, mas ninguém diz que as margens que o oprimem é que também são violentas. Portanto, com muitas citações de livros, etc., uma coisa muito bem arrumadinha, com um ar civilizado, provoca desgraças, e as pessoas que dizem que isto é uma desgraça é que são os maus da fita. Já estou habituado. Já é a segunda vez que diz isso. Falar, para alguém na sua posição – deixe-me usar uma expressão católica, porque é mais fácil –, é pecado? Depende, eu acho que não é pecado, porque o direito à liberdade de expressão está consagrado na Constituição, o dever de reserva está consagrado numa lei ordinária. E há que fazer um equilíbrio entre os dois? Exatamente. E como anteriores CNPMA não fizeram esse equilíbrio, eu vi-me forçado a pôr uma ação contra o Estado Português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH). Estive quatro anos à espera do despacho liminar, mas recebi-o e com uma coisa muito engraçada: o TEDH propôs a mim e ao Estado Português que fizéssemos um acordo. O Estado Português não quis fazer acordo comigo, tudo bem, está no seu direito, agora está a decorrer o prazo para a contestação do Estado, depois eu vou ter hipótese de replicar e a seguir virá a decisão. Mas há quem ache que isto é pecado. Eu não acho. Além de que fui católico e deixei de ser, agora sou ateu. Ainda por cima, nesse artigo que fala no dever de reserva diz-se que eu até posso falar desde que seja um motivo legítimo, desde que seja para defender interesses legítimos, e eu, enquanto os inférteis não tiverem uma voz reconhecida… quer dizer, os inférteis têm uma voz, a Associação Portuguesa de Fertilidade (APF), agora, a APF não foi ainda – como eu acho que tem necessariamente de ser – reconhecida como um parceiro social. A APF é a representante dos inférteis porque eles não têm voz e enquanto não tiverem uma voz mais forte eu vou falando. Sendo certo que quando eles tiverem essa voz poderei perfeitamente calar-me. Tem de haver alguém que defenda os inférteis e eu também lamento muito que o senhor Presidente da República não os tenha recebido. Dáme mágoa que ele não tenha recebido estas pessoas porque elas estão em sofrimento, não vou cansar-me a repetir isto, são pessoas que estão em grande sofrimento, a natureza foi cruel para com elas.
“A posição do TC é esta: só há uma forma de constituir família, só há uma forma de as pessoas se reproduzirem, e conformem-se. E esses tais cruéis e desalmados dizem ainda pior: “Ponham à borda. Estão a sofrer? Não gostam? Ponham à borda!”
“Há pessoas que mostram uma alegria feroz por destruírem os sonhos desta gente que para mim só têm uma classificação: não são humanas”
“As sociedades têm de ter estes guardas que ninguém guarda, mas o que temos é de ter muito cuidado na escolha das pessoas que vão para esses lugares, com todos os juízes em geral e os juízes do TC em particular”
“O primeiro interrogatório de arguido detido viola o princípio da proibição de autoincriminação”
“O diretor do CEJ, que devia ser eleito pelo Parlamento, devia lá ir prestar contas, e os presidentes dos Supremos também deviam lá ir apresentar um relatório todos os anos”
A propósito do caso La Manada – estamos a falar de uma violação coletiva nas festas de San Fermín, em Pamplona –, há uma diferença entre o crime de abuso sexual e o de violação no Código Penal espanhol… E no nosso também. Não houve uma alteração? Houve uma alteração no sentido de esse mesmo crime pelo qual os espanhóis foram condenados ter uma moldura penal maior, mas continua a haver uma diferença entre violação e as ofensas. Mas deixou de ser exigido em Portugal grave ameaça e violência, foi isso não foi? Tecnicamente os crimes ainda são distintos. Agora, a moldura penal é mais alta em Portugal, felizmente, e as características do crime são diferentes; em Portugal também é, chamemos-lhe assim – e peço imensa desculpa porque a violação é um crime horrível –, mais fácil ser condenado por um crime de violação do que em Espanha. O problema em Portugal não é o Código Penal, é o Código de Processo Penal. Eventualmente, em Portugal, mesmo tendo em conta posições muito conservadoras que existem no subsistema penal da jurisdição portuguesa, era mais provável que a condenação fosse por violação, o que era óbvio do meu ponto de vista pelos factos que li. Ainda há tribunais que confundem um pouco sexo forçado com ato consentido. O DN relatou há cerca de uma semana um caso, que foi decidido em 2011, de uma paciente grávida que foi violada pelo psiquiatra e em que a Relação do Porto considerou que não tinha havido violência suficiente para justificar a condenação por violação. Como é que tem visto estas interpretações da lei? Voltamos outra vez aos guardas [risos]. Há um conceito jurídico muito interessante e que é o seguinte: as motivações não jurídicas da decisão judicial. Qualquer decisão judicial tem uma componente ideológica. O facto de eu ter uma determinada profissão – juiz, procurador, ou qualquer coisa assim – não faz de mim, só por isso, uma pessoa moralmente superior ou com uma ética mais à prova de bala, nós somos seres humanos. Portanto, há esse espaçozinho que é ocupado pelas motivações não jurídicas do decisor, e isso é impossível de evitar ou então deixávamos de ser pessoas e éramos robôs. O grande problema aqui é: tem ou não tem de haver um perfil para os juízes? (E para os juízes do TC ainda mais.) E esse é o único escrutínio que o senhor admite? Porque os tribunais são um poder de soberania também. O Ministério Público não é. Portanto, o único escrutínio que pode haver é na escolha, é a montante? É, sim. Os critérios têm de ser bem definidos. Um general francês dizia que a guerra é demasiado importante para ser deixada nas mãos dos militares. É a mesma coisa para todas as profissões. Tem de haver mecanismos de controlo ex ante, no princípio mas também no durante; uma peça-chave aqui é o diretor do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), que se calhar devia ser eleito pelo Parlamento, porque a justiça não é uma questão de partido ou até de governo, é uma questão de Estado e Estado é o Parlamento. Portanto, o diretor do CEJ devia ser eleito pelo Parlamento por maioria simples, senão nunca mais era eleito, mas com base num programa em que estavam definidos os critérios sobre qual é o perfil dos juízes e dos procuradores e quais os objetivos da formação. Como é que se faz essa espécie de apuramento de raça no CEJ? Porque estamos a falar de questões ideológicas e de sensibilidades, se quiser. Temos tido decisões, ultimamente, com um pendor mais machista, menos machista, mais retrógrado, menos retrógrado, e como é que se consegue esse apuramento a montante que seria feito no CEJ? Definir um perfil chega? Ajuda, ajuda imenso. Depois há o durante… Quando há um erro grosseiro, como é que se ultrapassa tendo conta esse princípio? No durante é o presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Já agora devo dizer que acho errado haver a separação entre os tribunais administrativos e fiscais e os tribunais comuns, devia haver uma única jurisdição. Mas como as coisas estão, o presidente do STJ, que é o presidente do Conselho Superior da Magistratura, e o presidente do Supremo Tribunal Administrativo, que é o presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, deviam todos os anos ir apresentar um relatório à Assembleia da República, à primeira comissão, para as coisas serem discutidas. Portanto, o diretor do CEJ, porque seria eleito pelo Parlamento, ia lá prestar contas e os presidentes dos Supremos iam apresentar um relatório todos os anos. Durante os 11 anos que fui presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida ia apresentar relatórios de atividades, à comissão de Saúde e à comissão de Educação e Ciência. Não vejo problema nenhum nisso. Nunca será possível eliminar incidentes adversos, podemos é delimitar o risco. Como é que entende o papel do juiz de instrução e considera que esse papel é genericamente bem cumprido em Portugal? Como já disse, o mal não é o Código Penal, é o Código de Processo Penal, que, tal como está construído, impõe quase ao juiz de instrução que seja um terceiro nível de polícia, mas está no código. O primeiro interrogatório de arguido detido é um exemplo flagrante – eu digo estas coisas e depois toda a gente fica chateada comigo, mas é a minha opinião – de uma violação do princípio da proibição de autoincriminação. As pessoas estão de tal forma pressionadas, querem tanto escapar, que dizem qualquer coisa. Estamos a falar daquele que devia ser o juiz dos direitos, liberdades e garantias. Mas não é. A estrutura do Código de Processo Penal não é essa, a estrutura do código empurra o juiz de instrução para ser um terceiro nível de polícia, o que tem de ser modificado é o código. Que balanço faz do trabalho quer do Ministério Público quer da atual procuradora-geral da República? No comment.