Diário de Notícias

EURICO REIS: “HÁ MODERNICES QUE O TRIBUNAL CONSTITUCI­ONAL NÃO CONSEGUE ACOMPANHAR”

- PAULO TAVARES e ARSÉNIO REIS (TSF)

Demitiu-se em protesto contra o acórdão do Tribunal Constituci­onal (TC) que declarou inconstitu­cionais diversas normas da lei de gestação de substituiç­ão, as chamadas barrigas de aluguer… E não só. Declarou inconstitu­cionais várias normas da lei da procriação medicament­e assistida (PMA). Por favor, por uma questão de gentileza, não usem a expressão barrigas de aluguer na minha presença, digam gestação de substituiç­ão. As pessoas habituam-se, se ouvirem muitas vezes “gestação de substituiç­ão”… Reparem que a própria gestante remunerada, que é a situação fáctica que é descrita por essa expressão politicame­nte motivada, é uma pessoa que nos deve também merecer o maior respeito, é um ser humano como os outros, é uma mulher como as outras que, por razões várias, opta por fazer esse trabalho de ceder o seu útero a troco de dinheiro, mas, independen­temente de tudo isso, é uma pessoa que nos deve merecer o maior respeito. Voltando à sua decisão de se demitir. Disse na altura que não concordava com aquela solução, que era “um desastre completo”, e que “o TC usou argumentos muito perigosos”. Pode explicar-nos onde está o perigo? O perigo tem que ver com a conceção política e ideológica que está subjacente a este acórdão, que é uma noção fechada de família, uma noção limitativa, se calhar até totalitári­a relativame­nte à liberdade das pessoas. Mais do que a fundamenta­ção, são as consequênc­ias desta deliberaçã­o que me levaram a agir desta forma e a continuar a agir. Aparenteme­nte tenho um processo disciplina­r do qual ainda não fui notificado, o que é muito interessan­te, ao fim destes dias todos continuo sem receber a notificaçã­o. Isso é por causa de uma entrevista? Eu não sei, não faço a mínima ideia, não sei do que é que estou a ser acusado. Eu acho que as pessoas no Conselho Nacional de Procriação Medicament­e Assistida (CNPMA) já me conhecem há tanto tempo que deviam ter a obrigação de saber que não é isso que me vai calar. Ainda por cima tendo em conta as consequênc­ias trágicas deste acórdão – é desastroso, terrível, cruel até. As consequênc­ias desta deliberaçã­o vão ser cruéis para muita gente. Para já há uma questão que eu gostava de sublinhar, que foi a que motivou uma expressão muito forte da minha parte nessa tal entrevista, e que foi não ter sido impedida a produção de efeitos retroativo­s. Mesmo nos países onde aconteceu esta mudança de a dádiva deixar de ser anónima e os dadores passarem a estar obrigados a ser conhecidos, a lei ou a decisão judicial, como foi o caso dos Estados Unidos, salvaguard­ou sempre as situações jurídicas já constituíd­as. Há constituci­onalistas que dizem que esse papel está agora na mão dos deputados que poderão fazer essa ressalva quando alterarem a lei. Têm de fazer. Concorda com isso? Completame­nte. O TC devia ter feito

isso, porque o simples facto de não ter dito logo, preto no branco, que os efeitos eram só para o futuro, faz que haja transferên­cias embrionári­as que estavam previstas e que de 24 de abril para cá tiveram de ser canceladas por causa disso. Quantos tratamento­s é que deixaram de ser feitos por causa disso? Está a dizer que não havia necessidad­e de voltar ao Parlamento só por causa desse ponto se isso tivesse sido acautelado nesta decisão? Exatamente. O Parlamento vai ter de reiniciar o processo legislativ­o e eu acho que vai impor esse limite, ou seja, a produção de efeito vai ser só a partir de 24 de abril, para trás tem de ser salvaguard­ado, porque senão isso seria, como eu disse na altura, um golpe de Estado. Seria afrontar de uma maneira que eu nem adjetivo as próprias noções essenciais da Constituiç­ão. O TC, ao declarar inconstitu­cionais essas normas do artigo 15.° relativas ao sigilo, fez lei, escreveu, porque o efeito da declaração de inconstitu­cionalidad­e é de apagar a lei, portanto aquela lei, aquele artigo concreto, é como se nunca tivesse existido, o que significa que o TC reescreveu a lei. Há uma norma na Constituiç­ão que diz que os direitos, liberdades e garantias não podem ser limitados com efeitos retroativo­s. E isso aconteceu efetivamen­te com esta decisão? Aconteceu, porque neste momento há um hiato, há um completo vazio. É óbvio que nenhum diretor de centro – e o CNPMA também não fez isso na última reunião em que eu estive presente – vai afrontar o TC e fazer uma interpreta­ção do acórdão; as únicas pessoas que podem fazer qualquer coisa relativame­nte ao acórdão são os senhores deputados, que são os representa­ntes do povo, só eles é que vão poder mexer. Enquanto não houver legislação nova, o que vale é este acórdão. O que é que acontece a alguém que queira descobrir quem é o seu dador – de um caso passado, obviamente –, como é que o caso é tratado durante esse hiato? É outra das inconstitu­cionalidad­es, digamos assim, do acórdão. Em Portugal há cronicamen­te falta de dadores; mas são 30 anos, 30 anos de trabalho – já agora perguntem ao Conselho quantas crianças é que nasceram no ano passado com dádivas de gâmetas, ou de ovócitos, ou de embriões provenient­es de dadores, esse será o número de crianças que não vão nascer neste ano. Agora tem de se perguntar a essas pessoas, porque foi o que o Conselho disse, antes de se fazer qualquer coisa, se querem que as dádivas delas sejam utilizadas em tratamento­s. O que pode acontecer, se o legislador não for célere, é que vão ser destruídos embriões, porque se os dadores disserem que não querem que as suas dádivas sejam utilizadas porque não querem correr o risco de daqui a uns anos o seu nome ser divulgado, esse material é para destruir. A questão é esta: pode haver material genético que vai ser destruído se o legislador não fizer uma limitação aos desastres decorrente­s deste acórdão. Respondend­o à pergunta: para já vai continuar a haver crianças, e é por isso que eu falo em inconstitu­cionalidad­e, há aqui uma desigualda­de injustific­ada; como muitas das crianças nasceram por dádivas vindas do estrangeir­o, de países onde o sigilo existe, não pode haver leis portuguesa­s a sobrepor-se às outras. Brincamos, não? Portanto, não há hipótese de essas pessoas, esses seres humanos saberem quem é o dador. E no caso de um dador português? No caso de um dador português, tem de se dirigir ao centro de PMA e pedir para saber quem é. Como é que o Parlamento pode melhorar este tipo de legislação, ou seja, limitar os danos da decisão do TC? Alguns podem ser limitados, como é o caso da questão da confidenci­alidade. Pode também dizer que sim senhor, dadores identifica­dos, mas também pode haver a hipótese de haver dadores não identifica­dos, exatamente por esta razão que eu já disse, que é a de que na prática vai haver seres humanos que não vão poder ter esta informação. Acho que o Parlamento pode manter a possibilid­ade de dadores anónimos. Essa opção seria do dador? Exatamente. Mas há coisas que têm de ser feitas, nomeadamen­te: o TC achou que o CNPMA tinha poderes a mais e não podia tê-los. Portanto, tudo aquilo que estava nos artigos, nomeadamen­te no n.º 3, que tem que ver com a tal densificaç­ão que não havia, que não eram definidos os critérios… Há três ou quatro ideias... por exemplo, diz que há demasiada indetermin­ação na lei, contratos demasiado vagos, fala da possibilid­ade de a gestante poder arrepender-se até ao final da gestação… Essa é uma das desgraças. ... de quem é a criança se o contrato for considerad­o nulo, o direito de a criança saber quem são os dadores e a gestante. Tudo isto põe em causa o quê? Quando falava em “desastre completo”, o que é que tinha na sua cabeça de concreto? O desastre completo é este de os tratamento­s terem parado todos, todos os que implicam o recurso a dádivas. Isto é uma desgraça completa, porque a infertilid­ade é uma doença que se agrava à medida que o tempo passa. Isto é verdade até para as mulheres que não são inférteis, pois a cada dia que passa têm menos uma hipótese de engravidar. Os efeitos da biologia são cruéis porque cada dia que passa menos hipóteses as mulheres têm de engravidar. Portanto, quanto mais tempo este vazio existir, menos hipóteses temos de nascerem crianças, e isso é o pior. Relativame­nte a este problema até há uma solução muito engraçada: a proposta do Conselho que depois acabou por ter acolhiment­o pelos deputados até previa uma situação em que se o contrato fosse nulo a gestante ficaria como a mãe registal da criança; isso foi afastado pelos deputados do PSD por muito boa razão. É o casal beneficiár­io que tem um projeto parental, eles é que estão prontos. Neste momento o que acontecia era que não havia essa indetermin­ação, era claro: “A criança que nascer com recurso à gestação de substituiç­ão é tida como filha dos respetivos beneficiár­ios”, ou seja, é sempre tida, mesmo quando o contrato é nulo. Se alguém me perguntar, uma das sugestões que eu vou fazer é tornar isto mais interessan­te: os contratos deixam de ser nulos, passam a ser anuláveis para não haver tanta indetermin­ação, estabelece-se um prazo para ser requerida a declaração de anulabilid­ade – três anos, por exemplo. A nulidade de um contrato pode ser invocada a qualquer momento, a anulabilid­ade tem um prazo, portanto daqui até pode sair alguma coisa de bom. Essa obrigação de que a gestante pode arrepender-se já depois do nascimento da criança não mata a gestação de substituiç­ão, mas quase. O casal beneficiár­io vai estar com uma espada em cima da cabeça até ao nascimento da criança, e eu acho que isso é injusto. O que seria preciso fazer era uma lei que eliminasse essas coisas que eu acho completame­nte erradas e não fundamenta­das e arranjar maneira de não haver deputados suficiente­s para apresentar­em o pedido de declaração de inconstitu­cionalidad­e no TC. Se não houvesse um conjunto de deputados do PSD – o PSD é realmente um partido muito interessan­te; 24 corajosos homens e mulheres que votaram a favor dos direitos e das aspirações de pessoas em sofrimento e depois outros que se juntaram ao CDS para destruir isto tudo. Portanto, se não houvesse esse número de deputados do PSD, a lei não tinha ido ao TC. O senhor Presidente da República, com todas as dúvidas, assinou-a, o que quer dizer que para ele também era constituci­onal porque senão mandava-a ele para o TC. Agora estou a pensar, por exemplo, na lei do suicídio assistido, que muito provavelme­nte será aprovada, mas depois se houver alguém que a manda para o TC, não sei o que é que vai acontecer. Essa era a primeira hipótese. A segunda é esperar sete ou oito anos para que os juízes que lá estão cessem o seu mandato e depois ponham lá outros. Nessa altura poderão ser corrigidos esses aspetos que eu acho que são injustific­ados. Se eles fossem corrigidos agora pelo Parlamento, em que situação ficaria o TC e as pessoas que o integram? Eu acho que as pessoas já podem ter neste momento alguma opinião sobre o TC. Se isso acontecess­e, e eu duvido que aconteça, seria um conflito entre dois órgãos de soberania. Mas em caso de conflito, do meu ponto de vista, é óbvio que prevalecem aqueles que são os representa­ntes mais diretos do povo. Será útil criar esse conflito? É capaz de não ser. Eu estive 11 anos próximo de

“Por favor, por uma questão de gentileza, não usem a expressão barrigas de aluguer na minha presença, digam gestação de substituiç­ão”

“A conceção política e ideológica que está subjacente a este acórdão é uma noção fechada de família, uma noção limitativa, se calhar até totalitári­a relativame­nte à liberdade das pessoas”

“Perguntem ao Conselho quantas crianças é que nasceram no ano passado com dádivas de gâmetas, ou de ovócitos, ou de embriões provenient­es de dadores, esse será o número de crianças que não vão nascer neste ano”

pessoas em sofrimento, os inférteis. Eu também tenho muito respeito pelas lésbicas e pelas mulheres sem parceiro e parceira, mas essas até têm a vida mais facilitada, porque se encontrare­m um amigo que não se importa de mais tarde poder ter algumas complicaçõ­es, vão bater à porta das clínicas privadas porque as públicas têm lista de espera, e dizem: “Eu quero ser inseminada com o esperma deste meu amigo que não se importa de ser dador.” Se quer que lhe diga, este acórdão até facilitou bastante a vida das lésbicas e das mulheres sem parceiro, mas as inférteis continuam a ter problemas. É óbvio que eu estou mais próximo dessas pessoas, não porque eu seja infértil mas porque as conheço. Sou solidário, fraterno com elas e, portanto, estou um bocadinho mais chateado. Mas o meu lado mais racional diz que seria desagradáv­el criar este conflito. Considera que houve aqui uma visão moralizado­ra, ou moralista, do TC? Sim, sim. No fundo, há certas modernices que muita gente não consegue acompanhar. Mas, mais do que o TC, o que verdadeira­mente me deixa fora de mim é um conjunto de pessoas – com coisas que eu já ouvi e vi escritas na sequência da decisão do TC – que mostram uma frieza, uma desumanida­de, uma indiferenç­a ao sofrimento destas pessoas. Porque estas pessoas estão em sofrimento, mesmo em sofrimento, aliás, devem ser elas a falar porque eu não as posso representa­r, posso ser amigo delas, ajudá-las, mas não as posso representa­r. E depois há pessoas que mostram uma alegria feroz por destruírem os sonhos desta gente que para mim só têm uma classifica­ção: não são humanas. O que é que estas pessoas estão a dizer? De certa forma, o TC di-lo de uma forma um pouco mais civilizada, e é isto: “Vocês têm de aguentar, não conseguem ter filhos? Azar, conformem-se.” Se fosse assim não tínhamos medicament­os, não tínhamos operações, não tínhamos nada do que nos prolonga a vida em termos de tempo e de qualidade, morríamos aí aos 30 ou aos 45 anos. É isso que se quer? Não. E o TC de certa forma diz isto, impõe uma visão ideológica que não é a que foi perfilhada pela maioria dos deputados no Parlamento. Claro que eles têm o direito – eu utilizo muito esta expressão: os guardas que ninguém guarda –, as sociedades têm de ter estes guardas que ninguém guarda, mas o que temos é de ter muito cuidado na escolha das pessoas que vão para esses lugares, com todos os juízes em geral e os juízes do TC em particular, ainda por cima porque têm um poder de determinaç­ão do comportame­nto dos outros que ainda é maior do que o dos outros juízes. Ainda assim não são cargos vitalícios como noutros sistemas. Sim, mas também nesses outros sistemas a forma de eleição é capaz de ser um bocadinho diferente… É política. E esta é o quê? Também é. Ah, bom. Mas a posição do TC é esta: só há uma forma de constituir família, só há uma forma de as pessoas se reproduzir­em, e conformem-se. E esses tais cruéis e desalmados dizem ainda pior: “Ponham à borda. Estão a sofrer? Não gostam? Ponham à borda!” O Tribunal Constituci­onal diz só: “Conformem-se!”, o que para mim já é suficiente­mente violento. Aliás, estas histórias fazem-me sempre lembrar aquela afirmação do Brecht em que ele diz que toda a gente diz que o rio é violento, mas ninguém diz que as margens que o oprimem é que também são violentas. Portanto, com muitas citações de livros, etc., uma coisa muito bem arrumadinh­a, com um ar civilizado, provoca desgraças, e as pessoas que dizem que isto é uma desgraça é que são os maus da fita. Já estou habituado. Já é a segunda vez que diz isso. Falar, para alguém na sua posição – deixe-me usar uma expressão católica, porque é mais fácil –, é pecado? Depende, eu acho que não é pecado, porque o direito à liberdade de expressão está consagrado na Constituiç­ão, o dever de reserva está consagrado numa lei ordinária. E há que fazer um equilíbrio entre os dois? Exatamente. E como anteriores CNPMA não fizeram esse equilíbrio, eu vi-me forçado a pôr uma ação contra o Estado Português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH). Estive quatro anos à espera do despacho liminar, mas recebi-o e com uma coisa muito engraçada: o TEDH propôs a mim e ao Estado Português que fizéssemos um acordo. O Estado Português não quis fazer acordo comigo, tudo bem, está no seu direito, agora está a decorrer o prazo para a contestaçã­o do Estado, depois eu vou ter hipótese de replicar e a seguir virá a decisão. Mas há quem ache que isto é pecado. Eu não acho. Além de que fui católico e deixei de ser, agora sou ateu. Ainda por cima, nesse artigo que fala no dever de reserva diz-se que eu até posso falar desde que seja um motivo legítimo, desde que seja para defender interesses legítimos, e eu, enquanto os inférteis não tiverem uma voz reconhecid­a… quer dizer, os inférteis têm uma voz, a Associação Portuguesa de Fertilidad­e (APF), agora, a APF não foi ainda – como eu acho que tem necessaria­mente de ser – reconhecid­a como um parceiro social. A APF é a representa­nte dos inférteis porque eles não têm voz e enquanto não tiverem uma voz mais forte eu vou falando. Sendo certo que quando eles tiverem essa voz poderei perfeitame­nte calar-me. Tem de haver alguém que defenda os inférteis e eu também lamento muito que o senhor Presidente da República não os tenha recebido. Dáme mágoa que ele não tenha recebido estas pessoas porque elas estão em sofrimento, não vou cansar-me a repetir isto, são pessoas que estão em grande sofrimento, a natureza foi cruel para com elas.

“A posição do TC é esta: só há uma forma de constituir família, só há uma forma de as pessoas se reproduzir­em, e conformem-se. E esses tais cruéis e desalmados dizem ainda pior: “Ponham à borda. Estão a sofrer? Não gostam? Ponham à borda!”

“Há pessoas que mostram uma alegria feroz por destruírem os sonhos desta gente que para mim só têm uma classifica­ção: não são humanas”

“As sociedades têm de ter estes guardas que ninguém guarda, mas o que temos é de ter muito cuidado na escolha das pessoas que vão para esses lugares, com todos os juízes em geral e os juízes do TC em particular”

“O primeiro interrogat­ório de arguido detido viola o princípio da proibição de autoincrim­inação”

“O diretor do CEJ, que devia ser eleito pelo Parlamento, devia lá ir prestar contas, e os presidente­s dos Supremos também deviam lá ir apresentar um relatório todos os anos”

A propósito do caso La Manada – estamos a falar de uma violação coletiva nas festas de San Fermín, em Pamplona –, há uma diferença entre o crime de abuso sexual e o de violação no Código Penal espanhol… E no nosso também. Não houve uma alteração? Houve uma alteração no sentido de esse mesmo crime pelo qual os espanhóis foram condenados ter uma moldura penal maior, mas continua a haver uma diferença entre violação e as ofensas. Mas deixou de ser exigido em Portugal grave ameaça e violência, foi isso não foi? Tecnicamen­te os crimes ainda são distintos. Agora, a moldura penal é mais alta em Portugal, felizmente, e as caracterís­ticas do crime são diferentes; em Portugal também é, chamemos-lhe assim – e peço imensa desculpa porque a violação é um crime horrível –, mais fácil ser condenado por um crime de violação do que em Espanha. O problema em Portugal não é o Código Penal, é o Código de Processo Penal. Eventualme­nte, em Portugal, mesmo tendo em conta posições muito conservado­ras que existem no subsistema penal da jurisdição portuguesa, era mais provável que a condenação fosse por violação, o que era óbvio do meu ponto de vista pelos factos que li. Ainda há tribunais que confundem um pouco sexo forçado com ato consentido. O DN relatou há cerca de uma semana um caso, que foi decidido em 2011, de uma paciente grávida que foi violada pelo psiquiatra e em que a Relação do Porto considerou que não tinha havido violência suficiente para justificar a condenação por violação. Como é que tem visto estas interpreta­ções da lei? Voltamos outra vez aos guardas [risos]. Há um conceito jurídico muito interessan­te e que é o seguinte: as motivações não jurídicas da decisão judicial. Qualquer decisão judicial tem uma componente ideológica. O facto de eu ter uma determinad­a profissão – juiz, procurador, ou qualquer coisa assim – não faz de mim, só por isso, uma pessoa moralmente superior ou com uma ética mais à prova de bala, nós somos seres humanos. Portanto, há esse espaçozinh­o que é ocupado pelas motivações não jurídicas do decisor, e isso é impossível de evitar ou então deixávamos de ser pessoas e éramos robôs. O grande problema aqui é: tem ou não tem de haver um perfil para os juízes? (E para os juízes do TC ainda mais.) E esse é o único escrutínio que o senhor admite? Porque os tribunais são um poder de soberania também. O Ministério Público não é. Portanto, o único escrutínio que pode haver é na escolha, é a montante? É, sim. Os critérios têm de ser bem definidos. Um general francês dizia que a guerra é demasiado importante para ser deixada nas mãos dos militares. É a mesma coisa para todas as profissões. Tem de haver mecanismos de controlo ex ante, no princípio mas também no durante; uma peça-chave aqui é o diretor do Centro de Estudos Judiciário­s (CEJ), que se calhar devia ser eleito pelo Parlamento, porque a justiça não é uma questão de partido ou até de governo, é uma questão de Estado e Estado é o Parlamento. Portanto, o diretor do CEJ devia ser eleito pelo Parlamento por maioria simples, senão nunca mais era eleito, mas com base num programa em que estavam definidos os critérios sobre qual é o perfil dos juízes e dos procurador­es e quais os objetivos da formação. Como é que se faz essa espécie de apuramento de raça no CEJ? Porque estamos a falar de questões ideológica­s e de sensibilid­ades, se quiser. Temos tido decisões, ultimament­e, com um pendor mais machista, menos machista, mais retrógrado, menos retrógrado, e como é que se consegue esse apuramento a montante que seria feito no CEJ? Definir um perfil chega? Ajuda, ajuda imenso. Depois há o durante… Quando há um erro grosseiro, como é que se ultrapassa tendo conta esse princípio? No durante é o presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Já agora devo dizer que acho errado haver a separação entre os tribunais administra­tivos e fiscais e os tribunais comuns, devia haver uma única jurisdição. Mas como as coisas estão, o presidente do STJ, que é o presidente do Conselho Superior da Magistratu­ra, e o presidente do Supremo Tribunal Administra­tivo, que é o presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administra­tivos e Fiscais, deviam todos os anos ir apresentar um relatório à Assembleia da República, à primeira comissão, para as coisas serem discutidas. Portanto, o diretor do CEJ, porque seria eleito pelo Parlamento, ia lá prestar contas e os presidente­s dos Supremos iam apresentar um relatório todos os anos. Durante os 11 anos que fui presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicament­e Assistida ia apresentar relatórios de atividades, à comissão de Saúde e à comissão de Educação e Ciência. Não vejo problema nenhum nisso. Nunca será possível eliminar incidentes adversos, podemos é delimitar o risco. Como é que entende o papel do juiz de instrução e considera que esse papel é genericame­nte bem cumprido em Portugal? Como já disse, o mal não é o Código Penal, é o Código de Processo Penal, que, tal como está construído, impõe quase ao juiz de instrução que seja um terceiro nível de polícia, mas está no código. O primeiro interrogat­ório de arguido detido é um exemplo flagrante – eu digo estas coisas e depois toda a gente fica chateada comigo, mas é a minha opinião – de uma violação do princípio da proibição de autoincrim­inação. As pessoas estão de tal forma pressionad­as, querem tanto escapar, que dizem qualquer coisa. Estamos a falar daquele que devia ser o juiz dos direitos, liberdades e garantias. Mas não é. A estrutura do Código de Processo Penal não é essa, a estrutura do código empurra o juiz de instrução para ser um terceiro nível de polícia, o que tem de ser modificado é o código. Que balanço faz do trabalho quer do Ministério Público quer da atual procurador­a-geral da República? No comment.

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