Sobre a lei de bases da Autoridade Marítima
Oexercício da autoridade do Estado no mar não tem uma lei de bases. É das poucas políticas públicas, quiçá a única, e mais num pilar da soberania, sem leis do Parlamento que instituam e regulem a política pública no plano político geral.
É necessária desde 1982, quando a 1.ª Revisão Constitucional estabeleceu que as Forças Armadas deixavam de ter competências próprias fora da Defesa; assim, a Autoridade Marítima devia ter deixado de estar subordinada à Armada e às suas chefias militares.
O que ainda acontece: a lei admite que os chefes dos departamentos marítimos e os comandantes regionais da Polícia Marítima (orgânica civil) sejam comandantes de zona marítima (orgânica militar), pelo que os titulares de órgãos civis (e, indiretamente, os capitães dos portos e os comandantes locais da PM) estavam e estão subordinados, na prática, a chefes militares (comandante naval e chefe do Estado-Maior da Armada); também por isso, usam geralmente a sua farda da Armada. O Tribunal Constitucional não declarou estas normas inconstitucionais, mas elas contradizem literalmente a Constituição da República Portuguesa.
Esta divergência face às normas constitucionais tem sido tolerada, quiçá aprovada, por se acreditar na narrativa das poupanças, segundo a qual Portugal poupa se a Armada dirigir (sozinha) e executar (em parte) a Autoridade Marítima; temem alguns que, se não for, teremos “duas marinhas” e desperdício. Está por provar a adesão desta narrativa à realidade. Mas há várias e boas razões para a rejeitar, assim se façam as perguntas certas.
Este problema pode corrigir-se pela raiz: a Assembleia da República cria uma lei de bases da Autoridade Marítima, na qual se definem as grandes linhas da organização do setor, por quem tem essa competência.
Esta política pública tem sido regulada por decretos-leis e outros diplomas subordinados, elaborados pelos serviços públicos, com fraco controlo dos órgãos de soberania. O conhecimento pormenorizado da realidade concreta por estes serviços e o fraquíssimo domínio da matéria pelos atores políticos conferem àqueles a oportunidade e o poder de conduzir a política pública como preferem, sem terem legitimidade política para tal.
É oportuno suscitar este problema agora, quando começam a elaborar-se os manifestos eleitorais dos partidos.
Podem assim arrancar, pela primeira vez, debates políticos e técnicos, abertos, que não se limitem aos atores do Estado com interesses na matéria, e que robusteça a lei de bases da Autoridade Marítima do Parlamento. E a convergência de todos os partidos em manter a Defesa separada da Segurança Interna permite augurar que podem corrigir-se várias disfunções, pela criação de uma guarda costeira (pela fusão da PM com a Unidade de Controlo Costeiro da GNR) e da transferência da tutela da Autoridade Marítima por inteiro para o Ministério do Mar.
Está por provar a adesão desta narrativa à realidade. Mas há várias e boas razões para a rejeitar, assim se façam as perguntas certas