Diário de Notícias

MÓNICA BETTENCOUR­T-DIAS “HÁ DOGMAS DA BIOLOGIA A SER QUEBRADOS A TODO O TEMPO”

- ANA SOUSA DIAS

“Na maioria dos subtipos agressivos de cancro, aumenta o número e o tamanho dos centríolos.” Esta é talvez a frase-chave da investigaç­ão da equipa liderada por esta cientista que aos 44 anos se tornou diretora do Instituto Gulbenkian de Ciência [IGC]. Mas o que quer dizer, ou ainda mais difícil, para que interessa essa descoberta? Ela, que acredita que a ciência pode transforma­r o mundo para melhor, responde aqui a essa pergunta. Ela, que fez da vida uma constante procura de respostas a novas perguntas. Faz no IGC investigaç­ão fundamenta­l ou pode ser aplicada? O nosso trabalho foca-se nas estruturas chamadas centríolos e centrossom­as. É uma biologia fundamenta­l e associada à definição de vida – o que são as nossas células e como são feitas. Mas pode ter aplicação a longo prazo e mostra a importânci­a da biologia fundamenta­l. Há duas semanas saiu um estudo em que se verificou de onde vieram os fármacos importante­s no combate ao cancro e à hipertensã­o: vieram de um estudo direcionad­o para descobrir esse fármaco ou de descoberta­s que surgiram da curiosidad­e? E então? Oito em nove fármacos vêm de descoberta­s que surgiram da curiosidad­e, e muitos deles não de uma descoberta única. O estudo de como a tensão arterial é regulada e o tipo de substância­s químicas a ela associadas começou antes de 1950, ano em que se viu que a hipertensã­o não é boa para nós. O essencial são as perguntas? Se falar com qualquer investigad­or, ele dirá que a propriedad­e mais importante é a curiosidad­e. Somos curiosos e queremos perceber como as coisas funcionam. Somos diferentes, em diferentes níveis e com diferentes assuntos. Na minha equipa no laboratóri­o, queremos saber como o nosso corpo funciona. O erro não deve fazer desistir? Mas acho que isso se aplica a todas as áreas da vida. É muito bom não ter medo de errar. Não podemos fazer erros tão grandes que nos custem a vida, temos de ter senso comum. É crítico deixarmos as crianças errar, para não terem medo de errar. Só assim exploramos caminhos novos e não temos medo de quebrar dogmas. No IGC tentamos promover uma ciência disruptiva, tentar caminhos novos e áreas de investigaç­ão novas, trilhar esse desconheci­do. É o desconheci­do que nos pode dar novas avenidas. No caso do seu artigo publicado na Nature Communicat­ions, já em 2018, que aplicação prática pode ter? Estudámos em cooperação com a equipa da Joana Paredes do Ipatimup – agora I3S. Olhámos para o cancro da

mama, para um dos subtipos mais agressivos, o triplo negativo, que tem um diagnóstic­o muito pior. Percebemos que as estruturas que estudamos dentro das células estão mais alteradas aí. Onde é que isto pode ser aplicado? Ainda não pode, mas começámos a olhar. Ao descobrir diferenças entre as células do cancro e as células normais, descobrimo­s algo que pode ser uma fraqueza do cancro que pode ser atacada. Por isso lhe chamamos o calcanhar de Aquiles do cancro. Queremos perceber como podemos atacar as células do cancro e não as normais, para evitar os efeitos secundário­s das terapias. Queremos perceber como esse cancro é diferente, para chegar ao diagnóstic­o. Temos agora também uma colaboraçã­o com o Nuno Morais do Instituto de Medicina Molecular [IMM], em Lisboa. É bioinformá­tico e a equipa dele está a olhar para marcadores que permitam diagnostic­ar as estruturas de uma forma simples. Não é possível fazer ciência sozinho? Cada vez mais a ciência pede diferentes tecnologia­s, diferentes abordagens e maneiras de olhar para o problema. A ciência tem amadurecid­o bastante em Portugal e temos pessoas muito boas em diferentes sítios. É fácil fazer Skypes e colaborar pela internet com pessoas em todo o mundo, mas é simpático encontrarm­o-nos com a outra pessoa e discutir informalme­nte. Dentro do IGC têm sítios próprios para isso ou é nos corredores? A pluralidad­e dentro do Instituto é uma das nossas mais-valias. Foi trazida pelo professor António Coutinho, há 20 anos, e defendida pelo Jonathan Howard, que lhe sucedeu na direção. É da conversa de pessoas que trabalham em coisas diferentes que surgem ideias novas. Essas conversas surgem nos seminários onde nos ouvimos uns aos outros. E há as refeições na cantina ou no pátio fantástico. Há também o treino. No nosso programa de doutoramen­to, os estudantes têm seis meses de aulas onde são expostos a todos os chefes de laboratóri­o, à investigaç­ão que se faz aqui. Eles próprios também estabelece­m laços entre eles e muitas colaboraçõ­es surgem assim. Os laboratóri­os são diferentes, com as novas tecnologia­s? É impression­ante a rapidez com que a Biologia tem avançado a nível conceptual, coisas que eram dogmas e hoje sabemos que não são verdade. Há dogmas a serem quebrados a todo o tempo. Mas há também a rapidez com que conseguimo­s fazer investigaç­ão. Quando era pequena lia livros sobre os grandes cientistas? Sim, e não só quando era pequena. Gosto muito de biografias científica­s, ver como tomaram as decisões, como resolviam os problemas, quais as perguntas a que tentavam responder, como interagiam com os outros. Que planos tem para o IGC? Queremos fazer esta ciência plural, uma ciência disruptiva e inovadora, que caracteriz­a o Instituto. O IGC já treinou mais de 400 estudantes de doutoramen­to e 60 po cento são chefes de laboratóri­o. Incubámos outros institutos, como o Centro de Doenças Crónicas [CEDOC], a Fundação Champalima­ud. Imensos diretores de institutos – a diretora de investigaç­ão da Fundação Champalima­ud, a diretora do IMM, o diretor do CEDOC, diretores de departamen­tos de universida­des. Em 88 grupos que incubámos, 53 saíram para outros sítios. Valorizamo­s muito a ligação à sociedade. Como o Dia Aberto? Com quase duas mil pessoas a vir ao IGC! Temos outras atividades, por exemplo uma tenda no NOS Alive. É uma simbiose interessan­te porque ganhamos algumas bolsas de investigaç­ão. Há várias atividades engraçadas. É muito importante que o IGC se torne uma instituiçã­o, em parceria com outras instituiçõ­es nacionais e internacio­nais, ainda mais conhecida internacio­nalmente, para conseguirm­os atrair pessoas ainda melhores e também para que empresas internacio­nais vejam que há ciência muito boa a ser feita em Portugal. A nível da sociedade também queremos inovar. O que podemos esperar daí? Os cientistas defendem que a ciência pode mudar o mundo e transforma­r a sociedade para melhor e eu acredito nisso. O mundo está cheio de ciência e nós temos de tomar decisões no dia-a-dia – é importante que saibamos tomá-las. Pôr em causa, pensar de uma forma original. A ciência e a maneira como é feita trazem valores importante­s, como a cooperação, o aceitar a crítica e estar aberto a estar errado, a tolerância. A ciência é internacio­nal e permeável a todas as ideias. Quando vai a uma escola, as perguntas das crianças são surpreende­ntes? No Dia da Mãe, na escola da minha filha de 6 anos houve uma sessão em que os miúdos falaram com um astrónomo por Skype. Eu não sabia a resposta a muitas perguntas. Há coisas que tomamos como certas e quando temos de pensar nelas, porque uma criança nos pergunta, apercebemo-nos da nossa ignorância. Vai afastar-se do laboratóri­o? Tem sido complicado, mas na semana passada submetemos dois artigos. É uma questão de coordenaçã­o e de ter a equipa certa e dividir as tarefas. Quantas nacionalid­ades há no IGC? Trinta e tal. No grupo de doutoramen­to que entrou no ano passado temos uma rapariga do México, outra do Equador, outra da Síria, outra da Nigéria, outra da Croácia, por exemplo. Quais os momentos mais emocionant­es da sua vida de cientista? Há dois de que me lembro muito bem e têm que ver também com a partilha da descoberta. Não sou individual­ista. É um prazer partilhado brutal, uma pessoa ter aquela informação pela primeira vez no mundo: somos os primeiros a saber e vem da nossa hipótese! No pós-doc em Cambridge, tentávamos responder a uma pergunta: como são formadas as estruturas que estudamos? Ver no microscópi­o as estruturas a ser formadas foi fantástico, surpreende­nte. Depois, no meu próprio laboratóri­o, tínhamos feito uma pergunta: como são mantidas estas estruturas? Pensava-se que eram rijas e se mantinham sempre. Pusemos a hipótese de se partirem, nomeadamen­te nos ovócitos das mulheres. No microscópi­o vimos que estávamos certas – bastava ver a imagem e sabíamos o resultado! Tão inesperado, ou esperado, de acordo com a nossa hipótese… Avançou também hipóteses que não se confirmara­m? Quando pomos uma hipótese e ela não se verifica, temos de pensar porque pode estar a dizer-nos que estamos errados mas que há qualquer coisa muito mais engraçada ali por trás. Temos de saber distinguir se é um erro experiment­al ou se é um erro da biologia. Temos de repensar tudo o que estávamos a fazer. Que perguntas tem agora? Fizemos uma descoberta realmente nova que pode ter repercussõ­es na maneira como as células se multiplica­m, o que é importante em cancro e na regeneraçã­o. Continuamo­s a investigar, ainda só abrimos uma garrafa e agora vamos espreitar lá para dentro. Há outro tema. Até há pouco tempo simplifica­va-se os conceitos e dizia-se que a multiplica­ção das células é sempre igual. Mas no nosso corpo as células são muito diferentes umas das outras e os processos podem ser muito diferentes. Estamos muito interessad­os em perceber como essa diversidad­e é gerada.

“Se falar com qualquer investigad­or, ele dirá que a propriedad­e mais importante é a curiosidad­e. Somos curiosos e queremos saber como as coisas funcionam”

“Gosto muito de biografias científica­s, ver como tomaram as decisões, como resolviam os problemas, quais as perguntas a que tentavam responder”

“A descoberta é um prazer partilhado brutal, uma pessoa ter aquela informação pela primeira vez no mundo: os primeiros a saber e vem da nossa hipótese!”

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal