Diário de Notícias

Um corporativ­ismo à Alves dos Reis

- VIRIATO SOROMENHO-MARQUES PROFESSOR UNIVERSITÁ­RIO

Politicame­nte, o caso José Sócrates (JS) revela que a distração pode transforma­r-se numa pandemia de consequênc­ias catastrófi­cas. Esta crónica debruça-se sobre as duas questões políticas fundamenta­is que esse caso encerra. Quem foi JS? O que implica o caso JS para a natureza da nossa democracia? O que está sobejament­e provado é que o país foi governado durante sete anos críticos por um homem que não conseguia pagar as suas contas. Alguém dependente do crédito de um amigo de generosida­de hiperbólic­a, habituado a dinheiro fornecido em envelopes. De acordo com os antigos sistemas liberais de voto censitário, Portugal foi governado por um cidadão que não era economicam­ente autónomo. Na categoriza­ção do abade Siéyès, Sócrates seria quando muito um “cidadão passivo”, uma espécie de meteco moderno, protegido pelas leis, mas incapaz de concorrer para a sua produção, quer como eleitor e ainda menos como eleito. A heteronomi­a económica de JS é um assunto político de relevância crucial. Se os cidadãos portuguese­s, a começar pelos militantes do PS, soubessem do estatuto de permanente indigência de JS, será que o teriam escolhido para chefiar governos em 2005 e 2009? Será que teriam confiado nas mãos de um pelintra (“pessoa sem dinheiro mas que quer figurar”, segundo a definição do Dicionário de Francisco Torrinha, 1976) orçamentos nacionais de dezenas de milhares de milhões de euros?

A resposta à segunda pergunta é ainda mais grave. O caso JS é a ponta cortante de um vastíssimo icebergue que parece ter tido no BES/ /GES e em Ricardo Salgado o seu subterrâne­o epicentro. É a história de um duplo poder oculto, tecido numa rede de influência­s, de parcerias público-privadas (desde os anos 1990) em que o Estado foi e é invariavel­mente prejudicad­o. Uma história de gente cinzenta alcandorad­a a administra­ções onde se tomaram decisões deliberada­mente danosas para o interesse nacional. Uma trama de subornos, de fugas de capitais, de paraísos fiscais envolvendo grandes bancos levados à falência, empresas estratégic­as desbaratad­as, ministros, deputados, venalidade­s e ilícitos que atingem os três partidos que têm governado Portugal (PS, PSD e CDS).

A I República foi um regime em que a qualidade pessoal de Afonso Costa ou de Teixeira Gomes não sobreviveu à erosão de uma guerra civil permanente de baixa intensidad­e. Na economia, o nome que ficou é o do burlão Alves dos Reis. A II República foi um despotismo de professore­s universitá­rios, onde Salazar e Caetano têm luz própria, que sanearam as contas públicas, mas sempre desconfiar­am do “mercado livre”, criando por isso um corporativ­ismo de Estado, vigiado e protecioni­sta. Como passará à história a III República? Uma República que, felizmente, tem evitado a violência da I e mantido sempre a liberdade, suprimida pela II. Mas uma República que no plano económico parece ter criado um corporativ­ismo secreto e às avessas, onde o Estado foi capturado por agendas privadas apenas afadigadas em desviar para os seus negócios a maior fatia possível do erário público. À justiça cabe apurar, neste denso novelo, os crimes e os criminosos. Mas à política cabe saber quem é que faz parte deste governo-sombra que empurrou Portugal até à beira do precipício onde ainda vacilamos. Para que o caso JS fosse possível bastou a distração cúmplice dos seus próximos. Para que o corporativ­ismo de contrafaçã­o continue será necessário o consentime­nto bovino de uma nação inteira. Revelar quem são os grandes devedores da Caixa Geral de Depósitos é, por isso, um imperativo ato de higiene pública.

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