Diário de Notícias

São tão tolos os sem dúvidas

- FERREIRA FERNANDES fake news, JORNALISTA

A12 de outubro de 1936 eu não estava lá, na Universida­de de Salamanca. Mas a história de Salamanca – a resposta do grande Unamuno ao general franquista Millán-Astray –, essa vivi a acreditar nela. Naturalmen­te não estive lá, nasci mais tarde e noutro continente, mas a versão que conheci desse incidente histórico próximo, do meu século e citado por gente grande, era límpida. Ontem, porém, ao ler o jornal El País, tive um sobressalt­o. Antes, descendo pelo online do jornal, detivera-me num debate de jornalista­s que estava a realizar-se em Madrid sobre fake news – mal moderno e generaliza­do. E foi então, abandonado o debate, que parei numa notícia com foto antiga. Antes não o fizesse, dormiria com mais uma certeza boa. A foto era a da barba branca de Miguel de Unamuno, reitor da Universida­de de Salamanca, a sair daquele célebre encontro público com um dos mais poderosos homens de Espanha, o general Millán-Astray, mutilado, cruel, glorioso e desbocado. Gritou o general, naquela cerimónia de vencedores da Guerra Civil com estudantes:“Viva a morte!” Respondeu sábio helenista que a sua universida­de era “o templo da inteligênc­ia e eu sou o seu sumo sacerdote”. E acrescento­u que vencer não é convencer: “Para convencer há que persuadir e para persuadir necessitar­íeis de algo que vos falta: razão e direito na luta.” Como não nos comovermos com estas palavras corajosas do velho sábio, ditas na cara do bruto? Ora, acaba de ser publicado um estudo de um historiado­r de Salamanca – ontem divulgado por El País e El Mundo – que seguiu a traça da versão que levou ao meu deslumbram­ento (e de mais uns milhões). Aquele diálogo, diz o estudo, é um mito. Uma enfim... Luis Portillo, um jovem professor republican­o, fugido para Londres, que não estivera no encontro de Salamanca, narrou-o em 1941, na BBC, nos termos épicos que conhecemos. O seu amigo George Orwell, o futuro escritor dos avisos sobre o engano (O Triunfo dos Porcos, 1984...), ajudou Portillo a divulgar o célebre incidente, que Hugh Thomas, o maior historiado­r da Guerra Civil Espanhola, transcreve­u como facto histórico... E, para vos dizer a verdade, ontem dormi bem, continuei com a minha certeza boa, acrescida agora pela dúvida de ela não ser verdadeira.

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