Caquistocracia
Em 2016, as associações, os dicionários e as editoras que se dedicam à “palavra do ano” foram quase unânimes ao escolher “pós-verdade” (quando numa discussão os apelos à emoção ganham preponderância sobre os dados factuais), tendo em conta, acima de tudo o resto naquele ano, o noticiário em torno das eleições norte-americanas e do brexit.
Em 2017, as decisões foram mais heterogéneas: a American Dialect Society escolheu “fake news”, que no fundo é a versão criminosa da pós-verdade, o Dicionário Merriam Webster elegeu “feminismo”, com o movimento #MeToo na cabeça, e o Dicionário Oxford optou por “youthquake”, por causa da constatação da importância da juventude em escolhas políticas na Grã-Bretanha, na Austrália e na Nova Zelândia. Na Alemanha e em Portugal, a Gesellschaft Für Deutsche Sprache, associação pioneira na escolha de palavras do ano, e a Porto Editora optaram por vocábulos mais adaptados à realidade doméstica: no primeiro caso, “jamaika-aus”, ou fim da Coligação Jamaica, assim chamada por causa das cores – verde, amarela e preta – dos partidos alemães que a compunham, e “incêndios”.
Apesar de ainda não termos chegado a meio de 2018, linguistas como o colunista do jornal Folha de S. Paulo Sérgio Rodrigues já têm uma palavra do ano favorita. O ponto de partida foi um tweet dirigido a Donald Trump pelo ex-diretor da CIA John O. Brennan no dia 13 de abril: “Depois de uma jornada lamentável, a sua caquistocracia está desmoronando.” Na realidade “caquistocracia” não consta sequer ainda dos dicionários de português – Brennan redigiu “kakistocracy”, um termo nascido num discurso do rei inglês Carlos I em 1644.
Em grego, “kakisto” significa “péssimo” e “cracia” equivale a “governo”, como em democracia, aristocracia, burocracia ou canalhocracia, a palavra no léxico português que mais se aproxima do significado de “kakistocracy”. “Caquistocracia”, portanto, será o sistema em que os piores governam.
Nos meses que faltam para 2018 terminar, além de Trump continuar seguramente a dar motivos para a propagação da palavra, há ainda um evento marcado para outubro capaz de solidificar a sua difusão global: as eleições brasileiras.
Porque só numa “caquistocracia” é possível que, sob o pretexto de se apear do poder uma já de si má presidente, se coloque no seu lugar quadros do pior do pior do pior da política brasileira: o Movimento da Democracia Brasileira (MDB).
Como Michel Temer, alvo de duas denúncias por corrupção e lavagem de dinheiro e considerado chefe de uma organização criminosa a que a Procuradoria-Geral da República chama de “quadrilhão do MDB”. Ou como o número dois, Eliseu Padilha, e o número três, Moreira Franco, citados em conjunto 78 vezes na Operação Lava-Jato e acusados de apropriação indevida de propriedades, no caso do primeiro, e de fraude eleitoral, no caso do segundo. Já para não falar dos ex-ministros Henrique Eduardo Alves e Geddel Vieira Lima, do aliado Eduardo Cunha e do assessor especial Rodrigo Rocha Loures, todos presos nos últimos dois anos por vasta gama de crimes.
Pior: a “caquistocracia” brasileira fez que o PP, único partido ainda mais envolvido na Lava-Jato do que o MDB, gerisse no atual governo um orçamento recorde de 60 mil milhões de euros, através dos ministérios da Saúde, da Agricultura, das Cidades e da direção do banco estatal Caixa Económica Federal, oferecidos por Temer. E que esse mesmo PP passasse de 38 a 54 deputados na última janela partidária, aquele mês em que os deputados podem mudar de partido em troca da melhor proposta, tal e qual os jogadores de futebol.
Pior ainda: mesmo que o próximo presidente hostilize MDB e PP na campanha, uma vez eleito terá de se aliar a eles e a outros partidos do tipo se quiser governar – eis a “caquistocracia” no seu limite. E isto em plena era da supostamente moralizadora Operação Lava-Jato e das megamanifestações contra a corrupção.
Porque quem achou que a Lava-Jato e as manifs na Avenida Paulista fossem acabar com a “caquistocracia” embarcou numa pós-verdade. Ou em fake news.