Ir a Fátima a pé como peregrino: “Um sonho de há muitos anos”
Pagar uma promessa de fé é o que move gente de diferentes gerações. O DN acompanhou grupo de Santo Tirso que se estreou na peregrinação. Seis dias depois, chegaram a Fátima
João fala com dificuldade. Tem 31 anos, é natural deVizela, e recupera ainda de um traumatismo cranioencefálico que sofreu num acidente de trabalho. Caminha ao seu ritmo, sempre ajudado pelo grupo de 19 pessoas que partiu de Santo Tirso no sábado, 5 de maio, com destino a Fátima. São mais de 230 quilómetros a caminhar. Quando o DN encontrou este grupo – no troço entre Condeixa e Pombal, um dos mais perigosos, por se fazer à beira do movimentado IC2 – faltava apenas um dia para chegarem ao destino.
Na quinta-feira, 10 de maio, passava pouco das 19.00 quando cruzaram a entrada do Santuário de Fátima. “Correu tudo bem, mais uma vez”, conta Rui Arial, um metalúrgico que faz a sua 13.ª peregrinação, agora como guia daquele grupo. Quando nas primeiras vezes acompanhava um outro guia lá da terra, viveu a caminhada em “condições degradantes”. Cumprida a primeira promessa, fez outra: ajudar quem pudesse a peregrinar com dignidade.
É assim que começa a organizar tudo em janeiro. Faz todos os contactos e vê os preços, de modo a que o grupo pernoite sempre em residenciais ou hotéis. Nesta quarta-feira dormiram no Hotel Senhora de Belém, em Pombal. Depois faltará apenas um dia para chegarem ao destino.
Rui prefere grupos pequenos, mesmo sabendo que deixa de fora sempre alguns interessados. “No ano passado eram 24 pessoas. Este ano tinha mais de 30 interessados”, conta ao DN.
Acabou por fechar as inscrições em 19 pessoas, incluindo a mulher, Rosa, a prima Celeste, e outros amigos que o acompanham sempre. Em 2008 teve um acidente e partiu as duas pernas. Fez então nova promessa à Senhora de Fátima: “Enquanto puder, virei sempre.”
A saúde nas promessas
Quem fala por João é Ana Isabel Oliveira, 28 anos, diretora de marketing numa empresa de calçado. Conheceram-se no quarto de hospital, no Centro de Reabilitação do Norte, em Valadares. “Ele foi companheiro de quarto do meu pai, e foi um grande apoio para ele. Hoje somos família”, conta Ana, que vai a Fátima cumprir a promessa que fez quando o pai teve um acidente de automóvel: se ele vivesse e ficasse bem, faria a caminhada de 230 km. Agora que o pai está a recuperar, fez-se ao caminho.
Nos dias anteriores foi caminhar uma hora por dia, como forma de se preparar para o esforço. Juntou-lhe umas aulas de zumba também. Ainda assim, o caminho é longo e duro. “O terceiro dia foi o pior”, conta, atormentada com dores musculares. O grupo faz-se acompanhar de um fisioterapeuta, e “há uma pessoa do grupo que faz massagens muito bem. Gente que vem há muitos anos e está habituada”, sublinha Ana, natural de Guimarães, que se juntou ao grupo de Santo Tirso. Um sonho de muitos anos O grupo para no marco do distrito, fronteira entre os distritos de Leiria e Coimbra. João Ferreira, 32 anos, empregado de balcão, é outro estreante. Quando chegam à tenda da Cruz Vermelha Portuguesa já lá está Inês Santos, 58 anos, administrativa num centro de saúde. “Isto foi um sonho de há muitos anos. Cada vez que olhava para a televisão e via os peregrinos dizia sempre ‘quem me dera estar ali. Um dia também vou’.”
O dia foi agora, em 2018. Não traz nenhuma promessa para cumprir, só quer mesmo “conhecer este mundo e saber o que move as pessoas”. Também Sílvia Pereira não traz qualquer promessa. Veio desafiada pela irmã, e embarcou na caminhada. Mas no grupo a maioria já é veterana nestas andanças. É o caso de Celeste Arial, que faz este percurso pela 12.ª vez. “Agora venho já sem promessa, só pelo gosto de caminhar.” Mas daquela vez que foi a primeira, tinha vivido horas de aflição, à conta de uma convulsão do filho. “Aquilo assustou-me tanto que agarrei-me logo à Senhora de Fátima, e agora venho sempre agradecer”, conta.
Aquela é a última noite em que o grupo dormirá pelo caminho, já que ao final do dia de quinta-feira as 19 pessoas chegaram a Fátima, em perfeitas condições. Fazem o caminho por etapas, devidamente programadas. Nessa noite, a maioria regressou a Santo Tirso, num miniautocarro alugado para o efeito. Em Fátima ficaram apenas Rui Arial e a mulher. Mas hoje a maioria regressa, para assistir às celebrações. Serão uma gota de água no oceano dos 35 mil peregrinos esperados no Santuário de Fátima.
“Estamos a prever mais uma vez que o recinto fique completamente lotado”, afirmou ontem o capitão Carlos Canatário, comandante do Destacamento de Tomar da GNR, para quem, apesar de não haver visita papal este ano, é esperada uma afluência muito semelhante à de 2017, ano do centenário. Já estão inscritos no santuário 86 grupos de 17 países diferentes.
Em 2008, Rui teve um acidente e partiu as duas pernas. Fez então nova promessa à Senhora de Fátima: “Enquanto puder, virei sempre”