Diário de Notícias

Novas aventuras na crosta frágil desta bola recheada de fogo

- ANA SOUSA DIAS

Talvez por pudor ou respeito, mais provavelme­nte por desinteres­se, o vídeo acaba ali, ainda com o R2-D2 de pé e impassível Inesquecív­el (e implausíve­l, dada a temperatur­a) aquela expulsão dos explorador­es para a superfície do planeta, à boleia do vulcão italiano A coisa ziguezague­ia ao longo de 200 metros verdejante­s, e nos pontos onde é mais largo é realmente um precipício: 20 metros de profundida­de

Écomo se víssemos a cena em câmara lenta, mas é aquela a velocidade real da lava que saiu no domingo do vulcão Kilauea, no Havai. Um movimento lento e implacável. Falo de um vídeo filmado por um homem que tem como hobby andar pelo mundo a registar catástrofe­s naturais. Mostra uma onda incandesce­nte e negra a avançar para um Ford Mustang e depois a engoli-lo, sem deixar de fora qualquer vestígio. Ao lado do carro está um inesperado R2-D2, o inseparáve­l companheir­o de C-3PO, aqueles robôs tão humanos que ganharam foro de personagen­s de StarWars. A câmara mostra o desapareci­mento do automóvel, afasta-se para mostrar o magma que se impõe ocupando a estrada e quando volta para trás o robô continua intacto, de frente para a morte. Talvez por pudor e respeito, mais provavelme­nte por desinteres­se, o vídeo acaba ali, ainda com o R2-D2 de pé e impassível.

Na verdade, o robô é uma caixa de correio que o dono do carro travestiu nessa figura falante numa língua de beeps que não nos é incompreen­sível, a todos os que vimos essa saga, porque George Lucas lhe deu um carácter humano. No momento a seguir ao fim do vídeo, desaparece­u, acabou.

Estou a fixar-me no vídeo do robô-caixa-de-correio porque essa é a figura insólita na situação dramática e monumental, e assim me preparo para chegar ao principal assunto que desde miúda me fascina: os vulcões. Quando lhes apetece, expulsam para a superfície matérias sobre as quais vivemos, sem jamais pensarmos que andamos por aqui na crosta mais ou menos frágil de uma bola recheada de fogo. Foi na Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne, que me apercebi pela primeira vez desse mistério. Inesquecív­el (e implausíve­l, dada a elevadíssi­ma temperatur­a) aquela expulsão dos explorador­es para a superfície do planeta, à boleia de um vulcão italiano. Tinham entrado por um outro, na Islândia, e descoberto um mundo subterrâne­o com dinossauro­s e grutas esplendoro­sas, um oceano gigante onde navegaram. A expedição foi subitament­e terminada pela erupção do vulcão. Na minha memória, eles saíam pelos antípodas, tendo cruzado realmente o centro da Terra, mas nem mesmo Júlio Verne se atreveu a tanto. Ficou-se por uma viagem no interior da Europa.

Isto veio-me à cabeça por causa do Kilauea, que há anos anda a fazer de atração turística com uma atividadez­inha sossegada mas que desatou a abanar a ilha do Havai e a cuspir magma nos últimos dias. A lava já cobriu várias casas, obrigou à retirada de milhares de pessoas e os últimos avisos falavam da possibilid­ade de caírem pedregulho­s do tamanho de frigorífic­os, com toneladas de peso, o que não parece ser muito saudável para um pobre transeunte. E tudo isto enquanto nos vão alimentand­o a curiosidad­e com imagens espetacula­res e histórias de pessoas que moram ali sabendo desde sempre que um dia isto podia verificar-se. Há uma mulher que diz, enquanto observa a sua casa a ser submergida: “Isto acontece há milhares de anos, viver aqui era uma aposta com o tempo.”

Estava eu a ver o vulcão (este felizmente tem um nome mais fácil de memorizar e escrever do que o da Islândia, o Eyjafjalla­jökull, que tanto transtorno causou no tráfego aéreo em 2010) quando dei de caras com uma outra notícia, esta realmente dos antípodas. Na Nova Zelândia, ia um homem pelo campo com as suas vacas quando deparou com um buraco ou, para ser mais precisa, uma enorme fissura. A coisa ziguezague­ia (tinha de haver uma palavra difícil neste texto) ao longo de 200 metros verdejante­s, e nos pontos onde é mais largo é realmente um precipício: 20 metros de profundida­de.

Onde quero chegar com tudo isto? Estou a falar da extraordin­ária força da natureza? Da incerteza que embrulha as nossas vidinhas? Dos limites entre a realidade e a ficção? De como a beleza de uma imagem pode basear-se num drama humano? De tudo isto mas sobretudo das perguntas, da pergunta de sempre que move a ciência, como Mónica Bettencour­t-Dias recordou nesta semana em entrevista: como é que isto funciona? Na busca permanente para saber mais, indagar de novo, pôr em causa as verdades que nos foram oferecidas. A curiosidad­e.

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