Um papel à medida de Joaquin Phoenix em estreia nos cinemas
Nunca Estiveste aqui valeu a Joaquin Phoenix o prémio de melhor ator no Festival de Cannes na edição do ano passado. Filme estreia-se hoje nas salas portuguesas
Um homem e a sua cabeça. O que dentro dela se agita de um passado traumático e se reflete nas ações do presente. Ou, por outras palavras, uma radiografia das memórias que dominam um corpo maciço, dorido e entregue à escuridão da alma. Assim se pode definir, em pinceladas largas, Nunca Estiveste aqui, quarta longa-metragem da escocesa Lynne Ramsay, que em 2017 saiu de Cannes com o prémio de melhor argumento, a condizer com o galardão atribuído ao ator Joaquin Phoenix, num papel que lhe assenta como uma luva.
O filme é baseado num livro de Jonathan Ames, e parte desta experiência interior de um ex-agente do FBI, Joe, seguindo os seus movimentos numa realidade de que parece estar constantemente alheado, a não ser quando os trabalhos que executa o puxam para ela.
Joe resgata raparigas sequestradas por redes de tráfico sexual. É isso que faz para ganhar a vida, com o estofo de quem conhece a violência desde sempre (os episódios de uma infância dramática e a passagem pela Guerra do Golfo, surgem em flashbacks que nos informam, a espaços, da tragédia por detrás da permanente agonia do protagonista).
Ele cuida da mãe, uma mulher idosa com um princípio de demência, e quando sente pânico mete a cabeça dentro de um saco de plástico e respira dentro dele. A realizadora de Temos de Falar sobre Kevin dá-nos a amostra deste quotidiano através de uma atmosfera fílmica cerrada, captando na massa corporal de Joe/Phoenix a angústia que fragmenta a – dele e nossa – perceção do real. Porque este é um filme deveras físico, em todos os aspetos. Inclusivamente, a sua notável economia narrativa está no modo como cada situação, cada plano sustenta e expõe uma verdade, sem que seja necessária uma extensa verbalização dos factos.
Aliás, Joe é mesmo um homem de poucas palavras, que troca a tradicional pistola por um bom martelo. Um dia é contratado por um senador para encontrar a filha deste, de 13 anos, mantida num bordel como escrava sexual. E é a partir desse momento que, dando um intenso uso ao martelo, o pesadelo que já era a sua vida vai tomar proporções irreversíveis, ao ver-se no centro de uma conspiração…
Se os traços desta história sugerem ao leitor um ar de Taxi Driver,a referência é tão válida quanto qualquerthriller nova-iorquino dos anos 1970/80. Mas o que Ramsay faz com isso já é de outro domínio: Nunca Estiveste aqui é um retrato introspetivo de particular ênfase psíquica (mais do que social), conduzido com desarmante subtileza por Joaquin Phoenix. Dá vontade de proclamar este como o seu melhor papel, mas isso seria ignorar o magnetismo das suas personagens em O Mentor e Vício Intrínseco, ambos de Paul Thomas Anderson, ou em Nós Controlamos a Noite, de James Gray. Isto não nos impede de sublinhar que Joe só poderia ser interpretado por Phoenix, num filme que fica a latejar como um poema violento.
Os episódios de uma infância dramática e a Guerra do Golfo surgem em flashbacks que mostram a agonia do protagonista