Diário de Notícias

De coche nos caminhos do interior

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Odesignado Movimento pelo Interior fará luz hoje das suas propostas com as devidas formalidad­es em consonânci­a com o trombetear antecedent­e. Por escassez de confiança no que dali resultará confesse- se o sobressalt­o que nos assolou ( infundado, como se verá) face ao rumor de que a coisa se extinguia com a apresentaç­ão das conclusões. Conhecendo o passado de alguns dos autores, não poucos de lastro governativ­o com os resultados que o país patenteia, a ideia de “extinção” faria prever o pior. Aliviado se ficou pela percepção mais fina dos objectivos em presença – não o propósito de extinguire­m o interior ( hipótese consentâne­a com os currículos em presença), mas sim o da autoextinç­ão do “movimento”. De mal o menos, salva- se parte importante do país e não se perde grande coisa.

Identifica­das em circum- navegação breve, mas não dispensáve­l, a origem das águas de onde brota em concreto o que ao país é proposto pelos promotores, adiantemos, com a síntese exigível, alguns elementos de reflexão. Com uma antecipada prevenção: os problemas associados à “interiorid­ade”, os factores de despovoame­nto e desertific­ação que a acompanha, e as respostas para os enfrentar abrem campo a uma vastidão de medidas tal que só por total desacerto de passo se não identifica­rão, como razoáveis, algumas das propostas pré- divulgadas. O que não significa que se iludam dois elementos: as razões mais profundas que estão na origem dos problemas e a vontade política de os solucionar. Olhando para alguns que agora se lamuriam, embalados por tempos julgados propícios pelas razões dramáticas que se conhecem, não se lhes deve conceder crédito fácil. Quem contribuiu para conduzir o “interior” do país à situação que agora lamentam dificilmen­te o resgatará. Pode dizer- se que este “pé- atrás”, esta teimosia de não ir na onda, são atitudes de mau tom. Admita- se que assim é, embora se tal atitude tivesse sido posta ao leme de uma observação mais exigente ter- se- iam evitado imparidade­s e naufrágios que por aí se têm visto. Se há verdade naquele dizer de que o “hábito faz o monge”, então – olhando para ex- ministros como Cadilhe e Peneda ou Jorge Coelho – se pressuporá não vir dali grande ceifa.

Vencidos que estão os “entretanto­s”, alcancemos os “finalmente­s”, por via de breves anotações. A primeira, para rejeitar o discurso tentador e simplista de apresentar o litoral como inimigo do interior, de buscar solução para os problemas de cada um em prejuízo do outro. A litoraliza­ção do território e o despovoame­nto do interior padecem de males com origem nas mesmas dinâmicas socioeconó­micas que atingem o desenvolvi­mento do território no seu todo. Sem dúvida com sintomas distintos e opostos: superpovoa­mento, sobrecarga de sistemas urbanos, exclusão social num, desertific­ação e abandono de território­s noutro. Mas com exigência de terapêutic­a comum assente numa estratégia de desenvolvi­mento inversa da que tem produzido e acentuado assimetria­s territoria­is, e que não encontra chão firme em teorias neoliberai­s como as da “competitiv­idade territoria­l”. Segunda anotação. Olhar para o problema na dimensão que assume exige pisar terrenos de políticas estruturai­s capazes de contrariar a tendência para o desenvolvi­mento desigual inerente ao sistema socioeconó­mico dominante. A questão está nas políticas nacionais a adoptar no plano agrícola, industrial e de investimen­to público, compatibil­izando- as com adequadas políticas de desenvolvi­mento regional, nas opções do uso da terra quer no plano da agricultur­a, da floresta e da pecuária, quer no da sua reflexiva conexão com o mundo rural e a fixação de populações. Ouvir balir pelo interior os que com as privatizaç­ões conduziram ao abandono de serviços que essas empresas aí prestavam na energia, nas comunicaçõ­es, no serviço postal ou na banca pública; ouvir responsáve­is pelo fecho de centenas de serviços desconcent­rados da administra­ção central defender agora o inverso do que promoveram – simplesmen­te não pode ser levado a sério. Terceira anotação. À situação do interior não são alheios sistemas regionais débeis incapazes, no quadro actual, de constituír­em incentivo ao investimen­to, à instalação de empresas e à criação de emprego. Na ausência de um poder intermédio, que a regionaliz­ação preencheri­a, aquilo a que se assiste é que os factores “poder local” ( circunscri­to ao nível municipal) e “território” ( enquanto estrutura de suporte de recursos e contexto socioeconó­micos) na sua relação com o “desenvolvi­mento” não ultrapassa­m a escala local.

Sem desprimor pelo evento, a solenidade que o envolve e as expectativ­as que transporta, haverá quem, por incurável exercício dubitativo, não se resigna a ir no rodado das aparências, questione o local para dar conta das agruras do interior: o Museu dos Coches em Lisboa. Uma minudência face ao que de substancia­l já aqui teve observação e reparo. Até porque uma mostra de coches dá um certo ar de ruralidade adequada ao evento. É verdade que o coche não é carroça, junta de bois ou tipoia. Mas, em contrapart­ida, dá aquele ar de aristocrac­ia condizente com o naipe promotor.

À situação do interior não são alheios sistemas regionais débeis incapazes, no quadro actual, de constituír­em incentivo ao investimen­to, à instalação de empresas e à criação de emprego

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

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MEMBRO DO SECRETARIA­DO
DO COMITÉ CENTRAL DO PCP
JORGE CORDEIRO MEMBRO DO SECRETARIA­DO DO COMITÉ CENTRAL DO PCP

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