Paulo Nozolino fala da fotografia e justifica que é a sua prova de vida
A coleção Ph. da Imprensa Nacional reuniu mais de cem imagens do fotógrafo que correu mundo.
PAcheiqueeraumdever cívico. É a Imprensa Nacional que imprime os meus passaportes, e o passaporte foi o que me permitiu viajar durante anos. Sem ele não teria feito as fotografias deste livro. E era um dever didático, pois finalmente há uma coleção dedicada só à fotografia e vendida a um preço módico – 19 euros. É o meu livro que mais fotografias tem. A sua primeira fotografia foi tirada em Atenas, na Acrópole. Com que máquina? Uma Kodak Instamatic de plástico, do meu pai. Estava anotada por trás, pela minha mãe, que a tinha tirado. Lembro-me de ter estado lá, de tocar nas pedras, de ter sentido uma coisa muito forte naquele sítio. Talvez tenha pedido a máquina ao meu pai, para me lembrar depois. Mas esqueci-me disso durante anos. Como se tornou fotógrafo, que impulso foi esse? Isso sempre esteve ligado a viajar, a sair do país. Tentei exprimir-me através da pintura e da música, e nada batia certo. Tinha um grande amor pela fotografia que via em revistas e em livros. Tudo o que li e que vi fui à procura, os meus pais não tinham livros. Compreendi que havia uma possibilidade de ver as coisas e de as captar. A sua vida pessoal está ligada à fotografia? O Paulo está nas fotos? A fotografia foi sempre como uma prova de vida: eu estive aqui, eu vi isto, eu senti isto. É uma coisa relativamente fácil de fazer e de transportar, permitiu-me grande mobilidade. Sempre a utilizei como meio de registar coisas que eram importantes para mim ou que me impressionavam. Não é um registo de repórter? Não pensei que aquilo que conseguia fotografar interessasse quem quer que fosse nos meios jornalísticos. Nunca me considerei um jornalista. Nunca tive a veleidade de pensar que podia mudar o mundo com fotografias, como muitos acreditaram. Mas sempre acreditei no poder da imagem, ainda hoje acredito muito. E no entanto é um leitor. No seu santuário tem fotografias de escritores. Tenho vários, tenho, que me destruíram a vida e me abriram os olhos para muitas coisas. Sem os livros que li, sem a música que ouvi, sem os quadros que vi, as esculturas, as pinturas, a arte, não faria as fotografias que faço. Anda sempre com máquina? Numa rotina o olhar banaliza-se e já não vemos nada. De cada vez que viajo, de cada vez que vou a um sítio onde nunca fui, levo a máquina porque pode ser que veja algo que me toque. E depois é uma pulsão que é inexplicável e que não tento racionalizar. Limito-me a fotografar. E isso é o princípio. Continua a usar rolo? Não uso digital. O rolo é físico. Gosto muito da ideia de uma película que está impregnada de sais de prata e vai ser escurecida numa fração de segundo em que a luz entra através de uma objetiva e imprime uma imagem no filme. Ainda há algo de mágico nisto, é como a lanterna mágica. No livro há situações que se presume serem de guerra, de refugiados, humanamente densas. Como se move aí? Não vou a zonas enquanto há guerra, porque isso é um trabalho para profissionais. Gosto de ir depois, quando as feridas estão a sarar e começa outro tipo de problemas. É tudo subsistência, é tudo sobreviver. Não podemos dar-nos ao luxo de viver, temos de sobreviver. Sobreviver é um recomeço, não é um gesto de desespero. Quem sobreviveu aos campos de concentração teve de sobreviver. Dou o exemplo dos campos porque foi a situação extrema do século passado. De alguma maneira, tudo aquilo que vivo, tudo aquilo que vejo as pessoas fazerem e dizerem comparo sempre com o que estaria a acontecer se isto fosse um campo. Este trabalho de relativização permite-me detetar o estado das coisas, porque temos um mal absoluto e temos um certo bem-estar, com o qual estamos muito contentes. Mas este mal de viver, comparado com verdadeiros sofrimentos como já vi, não é nada. É importante haver um padrão e para mim o padrão foram os campos e o pós-campos. Foi ver os campos? Fui ver um campo, fui ver Auschwitz-Birkenau. Mudou a minha vida. Nesse dia tornei-me um homem. É uma visão de tal maneira terrível que tudo o resto parece irrelevante. Mesmo uma guerra normal parece irrelevante, parece menos… um sítio de indústria da morte. É alucinante. Ver como se organizam excursões, ver que aquilo se tornou uma Disneylândia onde as pessoas fazem selfies nas câmaras de gás dá-me vontade de vomitar. Escolheu um momento para ir? Fui a Auschwitz por uma razão muito precisa, em 1994. Estava a fazer um trabalho para uma exposição no Centro Georges Pompidou. Éramos vários fotógrafos a fotografar países de Leste e calhou-me a Polónia. Estava perto, a trabalhar num conceito de tentar definir o que era a Europa. Um grande amigo meu disse-me: não te esqueças de ir àquele sítio, porque se não nunca hás de compreender a Europa. A chave da Europa está ali, está ali a ferida que nunca vai permitir que a Europa cresça de forma saudável. Estava perto e resolvi ir. Efetivamente, deu para compreender muitas coisas.