Diário de Notícias

Voluntaria­do. “Ser o tempo” que os outros precisam

- ANA BELA FERREIRA

Paula Formiga começou há menos de um ano a dar um pouco do seu tempo aos idosos do Centro de Dia de São Cristóvão e São Lourenço, uma das muitas instituiçõ­es da Santa Casa da Misericórd­ia de Lisboa (SCML) onde é possível fazer voluntaria­do. Duas horas e meia por semana, mais concretame­nte, o que até pode parecer que “é muito pouco, mas é tudo uma questão de gestão do tempo”, como a própria garante. A prova de que o tempo não é pouco, desde que se esteja 100% entregue à causa, é que menos de um ano depois de aqui ter chegado, a sua figura já é seguida pelos olhares ansiosos dos idosos que querem falar com ela ou que lhe chamam à atenção se há alguns minutos de atraso.

São sinais como estes que a voluntária entende como um elogio ao seu trabalho. Durante o tempo que aqui passa, Paula Formiga conversa com os idosos, faz desenhos e pinturas, traz revistas ou fotografia­s para verem juntos. “Inicialmen­te este trabalho começou com um pedido: falar com as pessoas. De facto, conhecendo um bocadinho este público-alvo, nesta zona da cidade [Mouraria], percebe-se que são pessoas com baixa escolarida­de, que tiveram quase todas elas trabalhos sem qualificaç­ão, e isso acaba por nortear o que podemos trabalhar aqui”, explica. “Como grande parte destes utentes tem as raízes na província, sentem-se mais sozinhos”, acrescenta a voluntária.

Mas até aí Paula encontrou pontes e a prova de que no trabalho voluntário se recebe tanto como se dá. “Há uma senhora que é do Alentejo e o engraçado é que todas as semanas me pergunta pela minha mãe, porque descobriu que a minha mãe é do Alentejo. A nossa conversa é sempre sobre

Solidaried­ade. Paula Formiga chegou a 1 de junho de 2017 ao Centro de Dia de São Cristóvão e São Lourenço, em Lisboa, e garante estar para ficar. É um dos mais de 500 voluntário­s da Santa Casa. Todas as semanas, dedica duas horas e meia “em exclusivo” a falar com os idosos que frequentam o centro. A diretora de recursos humanos garante que tudo é uma questão de “gerir o tempo” e “ser o tempo” de forma comprometi­da durante essas conversas

as minhas raízes do Alentejo, está a ser para mim muito gratifican­te trabalhar com ela porque tenho uma relação muito forte com o Alentejo e com os meus avós e, portanto, quando falamos as duas é um momento sempre hilariante, porque rimo-nos e contamos histórias do Alentejo, trocamos receitas e falamos dos bordados da minha avó, e por isso trabalhar até estas memórias é muito interessan­te.”

Outros utentes recebem de Paula perguntas interessad­as – “se sei que vão ao médico ou que recebem a visita de familiares”. Isto porque, para se organizar, a diretora de recursos humanos, que tem formação jurídica, começou a preparar um diário de bordo em casa, de forma a tirar o máximo partido das horas que passa no centro de dia. “É uma questão de sermos o tempo e geri-lo de uma forma consciente, comprometi­da, e quando estamos cá, temos de estar a 200%.”

A decisão de se entregar a este trabalho surgiu depois da experiênci­a de Paula no desenvolvi­mento de algumas ações pontuais de responsabi­lidade social para a empresa onde trabalhava e de, no ano passado, ao mudar de emprego, ter sentido que “tinha o contexto adequado para fazer voluntaria­do” e inscrever-se na Santa Casa. O encontro de expectativ­as Não basta uma inscrição para começar a fazer voluntaria­do nas instituiçõ­es da Santa Casa. Ser voluntário aqui obriga a um compromiss­o de longo prazo, uma entrevista, formação e depois adequação do perfil do candidato às necessidad­es específica­s de cada sítio.

O primeiro passo é submeter a candidatur­a online e aguardar pela entrevista, que será marcada dentro de pouco dias, garante Luísa Godinho, diretora do gabinete de promoção do voluntaria­do da SCML. A entrevista serve para aferir o perfil e a disponibil­idade do candidato. “Se estiver tudo OK, passa à fase seguinte, que é a formação inicial.” Na formação “ficam a conhecer a instituiçã­o, os valores éticos e deontológi­cos do voluntaria­do, a lei do voluntaria­do”, explica a responsáve­l.

As áreas de voluntaria­do são muito diversas: da educação à saúde, passando pelo apoio domiciliár­io. Ao todo, 500 voluntário­s estão ativamente em programas da Santa Casa, com Luísa Godinho a assegurar que nenhum deles está a ocupar o posto de trabalho de alguém.

As necessidad­es são tão diversas que Paula até foi confrontad­a com uma das mais prementes, mas para a qual considerou não estar à altura: “Dar explicaçõe­s de Matemática e Físico-Química a estudantes de bairros carenciado­s. Aí, tive de confessar a minha total incompetên­cia para ajudar”, conta. Outro dos projetos com maior necessidad­e de voluntário­s era este onde Paula se encontra: “Disseram-me ‘precisamos de alguém que fale com as pessoas, quer fazer?’, e eu disse que sim.”

Estavam assim combinadas as expectativ­as da Santa Casa e as de Paula, que antes de iniciar este projeto, confessa, tinha como “maior expectativ­a ser útil e criar valor na vida das pessoas”. Retribuir a ajuda à Santa Casa A história que levou Paula a escolher a Santa Casa para fazer voluntaria­do começa antes de a própria ter nascido. “O nome da Santa Casa sempre esteve presente na minha casa. A Santa Casa ajudou os meus pais, no início da vida em comum deles, pelo período que estávamos a viver no país e que foi um contexto um bocadinho complicado. Eu cresci sempre a ouvir dizer que a Santa Casa nos ajudou. Lembro-me de ter 10, 11 anos, num sábado, de acabarmos de almoçar e de o meu pai ir ver um boletim de jogo que estava premiado. O meu pai disse que não queria levantar o prémio e eu, na ânsia de querer receber o dinheiro, perguntei porquê. Ele respondeu-me: ‘A Santa Casa também nos ajudou e isto é uma forma de nós ajudarmos a Santa Casa.’ Portanto, cresci com esta mensagem de que alguém nos ajudou e nós temos de retribuir.”

Por isso, Paula não tem dúvidas de que a sua missão é hoje “retribuir” aquilo que a Santa Casa fez pela sua família, “não interessa se foi muito ou pouco”. Também hoje, a voluntária partilha esses princípios com a filha e está desejosa que complete os 16 anos para poder participar já em algumas ações de voluntaria­do. “Ela já tem essa consciênci­a e também partilho muito do trabalho que é feito aqui, o retorno que nos dá, para que ela perceba que o trabalho na vida não tem sempre de ter um salário económico, se calhar o salário que mais gozo nos dá é o emocional.”

Estar presente

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A principal missão de Paula é ouvir os utentes, estar presente, mas o trabalho tem de ser adaptado a cada pessoa e às suas necessidad­es
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Paula Formiga tira uma tarde todas as semanas para passar duas horas e meia no Centro de Dia de São Cristóvão e São Lourenço a fazer voluntaria­do

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