As verdadeiras cores da Google
Na mente humana existe um fenómeno a que gosto de chamar de “fiatização”. Trata-se de algo que é normalmente determinante na forma como muitas pessoas tomam decisões relativamente aos produtos e serviços que escolhem. O nome inventado pretende referir-se à “má fama” que a Fiat ganhou na década de 1980, por supostamente só fazer carros pouco fiáveis, especialmente em comparação com os seus rivais alemães.
Passados mais de 30 anos, e apesar de os métodos de construção, as tecnologias, até mesmo as pessoas por trás das empresas serem completamente diferentes, ainda ouço frases do tipo “os carros italianos avariam muito”. E nem o facto de lhes assegurar que tenho comprado sucessivamente (desde 1994) automóveis dessas marcas e que nunca me deram quaisquer problemas faz mudar o seu discurso. É incrível o poder das ideias preconcebidas.
A “fiatização” das marcas é particularmente poderosa quando acontece numa perspetiva negativa – o velho adágio “da má fama não se livra” – mas também pode funcionar no sentido inverso. A Apple (e as hordas de fãs que a seguem religiosamente) é o exemplo perfeito deste último caso. Num próximo segundo lugar vem a Google.
Na sua origem, os criadores do mais potente motor de busca da internet fizeram questão de que a sua homepage fosse uma página branca, “limpa”, e inscreveram no início do código de conduta da empresa a frase “Não sejam maus”. Era, em parte, uma forma de tentar demonstrar uma atitude diferente relativamente às outras tecnológicas – em particular a Microsoft, então no auge do seu poder e por muitos apelidada de “império do mal” (uma referência a StarWars) por ter comprado ou assimilado startups com potencial para lhes fazer alguma concorrência.
(Fama de que a empresa do Windows ainda hoje mal se livra, apesar de ser, por exemplo, a que mais tem desenvolvido tecnologias para garantir melhor acessibilidade a pessoas com deficiência.)
Nesta sexta-feira, o site especializado Gizmodo noticiou uma alteração relevante no referido código de conduta da Google: o “não sejam maus” desapareceu do topo e o que se fala agora é de “valores Google”. O famoso mote surge só no fim, en passant, num contexto de “se virem algo errado, digam”. Transformou-se assim o que era um lema num apelo à denúncia.
Além do simbolismo da mudança, a alteração ganha particular relevância por surgir poucos dias depois de vários funcionários se terem despedido, após se saber que a Alphabet (a organização que a Google criou para ser sua “mãe”) firmara acordos de fornecimento de tecnologia militar ao Pentágono. Ao bater com a porta, disseram considerar que esta decisão era contrária ao espírito original da empresa. O que, em si mesmo, é uma falsa ideia feita. Uma “fiatização boa”, portanto…
A Google vive da venda de publicidade direcionada e para isso cria perfis muito precisos dos seus utilizadores, com base nas suas atividades nos vários serviços que disponibiliza. Na sua infância, contavam os termos pesquisados por cada um. Hoje, cada mail que cruza um servidor Gmail, cada vídeo clicado noYouTube, cada palavra inscrita num blogue do Blogger, cada telemóvel Android vendido, cada app ou jogo descarregado na Play Store, cada destino inserido no Google Maps, cada viagem virtual pelo Google Earth ou no StreetView, cada notícia consultada no Google News, contribuem para o império Google. É daqui que vem todo o seu dinheiro.
O “não sejam maus” foi de facto uma (não intencional?) incrível ferramenta de marketing que ainda hoje dá à empresa a boa fama que tem. É indiferente se existe, ou não, uma base real para ela, desde que permita gerar as receitas que fazem felizes os acionistas da Alphabet.