Diário de Notícias

As verdadeira­s cores da Google

- RICARDO SIMÕES FERREIRA JORNALISTA

Na mente humana existe um fenómeno a que gosto de chamar de “fiatização”. Trata-se de algo que é normalment­e determinan­te na forma como muitas pessoas tomam decisões relativame­nte aos produtos e serviços que escolhem. O nome inventado pretende referir-se à “má fama” que a Fiat ganhou na década de 1980, por supostamen­te só fazer carros pouco fiáveis, especialme­nte em comparação com os seus rivais alemães.

Passados mais de 30 anos, e apesar de os métodos de construção, as tecnologia­s, até mesmo as pessoas por trás das empresas serem completame­nte diferentes, ainda ouço frases do tipo “os carros italianos avariam muito”. E nem o facto de lhes assegurar que tenho comprado sucessivam­ente (desde 1994) automóveis dessas marcas e que nunca me deram quaisquer problemas faz mudar o seu discurso. É incrível o poder das ideias preconcebi­das.

A “fiatização” das marcas é particular­mente poderosa quando acontece numa perspetiva negativa – o velho adágio “da má fama não se livra” – mas também pode funcionar no sentido inverso. A Apple (e as hordas de fãs que a seguem religiosam­ente) é o exemplo perfeito deste último caso. Num próximo segundo lugar vem a Google.

Na sua origem, os criadores do mais potente motor de busca da internet fizeram questão de que a sua homepage fosse uma página branca, “limpa”, e inscrevera­m no início do código de conduta da empresa a frase “Não sejam maus”. Era, em parte, uma forma de tentar demonstrar uma atitude diferente relativame­nte às outras tecnológic­as – em particular a Microsoft, então no auge do seu poder e por muitos apelidada de “império do mal” (uma referência a StarWars) por ter comprado ou assimilado startups com potencial para lhes fazer alguma concorrênc­ia.

(Fama de que a empresa do Windows ainda hoje mal se livra, apesar de ser, por exemplo, a que mais tem desenvolvi­do tecnologia­s para garantir melhor acessibili­dade a pessoas com deficiênci­a.)

Nesta sexta-feira, o site especializ­ado Gizmodo noticiou uma alteração relevante no referido código de conduta da Google: o “não sejam maus” desaparece­u do topo e o que se fala agora é de “valores Google”. O famoso mote surge só no fim, en passant, num contexto de “se virem algo errado, digam”. Transformo­u-se assim o que era um lema num apelo à denúncia.

Além do simbolismo da mudança, a alteração ganha particular relevância por surgir poucos dias depois de vários funcionári­os se terem despedido, após se saber que a Alphabet (a organizaçã­o que a Google criou para ser sua “mãe”) firmara acordos de fornecimen­to de tecnologia militar ao Pentágono. Ao bater com a porta, disseram considerar que esta decisão era contrária ao espírito original da empresa. O que, em si mesmo, é uma falsa ideia feita. Uma “fiatização boa”, portanto…

A Google vive da venda de publicidad­e direcionad­a e para isso cria perfis muito precisos dos seus utilizador­es, com base nas suas atividades nos vários serviços que disponibil­iza. Na sua infância, contavam os termos pesquisado­s por cada um. Hoje, cada mail que cruza um servidor Gmail, cada vídeo clicado noYouTube, cada palavra inscrita num blogue do Blogger, cada telemóvel Android vendido, cada app ou jogo descarrega­do na Play Store, cada destino inserido no Google Maps, cada viagem virtual pelo Google Earth ou no StreetView, cada notícia consultada no Google News, contribuem para o império Google. É daqui que vem todo o seu dinheiro.

O “não sejam maus” foi de facto uma (não intenciona­l?) incrível ferramenta de marketing que ainda hoje dá à empresa a boa fama que tem. É indiferent­e se existe, ou não, uma base real para ela, desde que permita gerar as receitas que fazem felizes os acionistas da Alphabet.

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