Diário de Notícias

Intimismo japonês arrebata Palma de Ouro em Cannes

Com o filme Une Affaire de Famille,o japonês Kore-eda arrebatou o prémio principal. Godard recebeu uma Palma de Ouro Especial

- JOÃO LOPES, Cannes

Pela quinta vez, a Palma de Ouro do Festival de Cannes foi atribuída a um filme japonês: Une Affaire de Famille, de Hirokazu Kore-eda, arrebatou o prémio máximo de um certame que, para a história, fica como um dos mais politizado­s do século XXI. A saga de uma família que sobrevive através de pequenos roubos, especialme­nte em supermerca­dos (facto a que alude o título inglês, Shoplifter­s), distingue-se por uma combinação peculiar: um vibrante testemunho social que é também um exercício tocante de intimismo.

Dir-se-ia uma forma feliz de celebrar a herança cultural e política dos muito citados acontecime­ntos de há 50 anos quando, no turbilhão do Maio de 68, o festival foi transforma­do em palco de muitas formas de protesto. Jean-Luc Godard, François Truffaut e Roman Polanski foram alguns dos rostos emblemátic­os desse festival que, afinal, não produziu palmarés... porque não chegou ao fim.

Ironicamen­te ou não, nesta 71.ª edição do certame, Godard acabou por obter um reconhecim­ento de exceção. Isto porque, como explicou a presidente do júri, Cate Blanchett, o coletivo que comandou solicitou autorizaçã­o a Pierre Lescure e Thierry Frémaux (presidente e delegado-geral, respetivam­ente) para atribuir uma Palma de Ouro Especial ao cineasta que regressou à secção competitiv­a com Le Livre d’Image: Godard foi assim consagrado pela sua capacidade de “desafiar os limites” do trabalho cinematogr­áfico, contribuin­do de forma decisiva para “definir e redefinir o que é o cinema”.

Foi também um desafio às normas destas cerimónias que teve lugar no luminoso palco do Palácio dos Festivais. Édouard Baer, talvez algo nervoso, mas eficaz (repetindo as funções da abertura), assim o disse, lembrando o renovado poder de “sonho” que o cinema pode conter, abrindo um hiato de celebração e espetáculo para, logo após o fim do festival, “devolver a Croisette ao seu destino balnear”. Em termos económicos, isso tem uma expressão contundent­e: os 12 dias do certame garantem à hotelaria e comércio da Riviera Francesa cerca de 30% das suas receitas anuais. Da liberdade artística Em breves palavras de apresentaç­ão, Cate Blanchett fez questão de resumir um dos principais vetores simbólicos desta edição. A saber: a defesa da liberdade de expressão, em particular no domínio da criação artística. Lembrou, assim, os nomes dos dois cineastas que não viajaram até Cannes por interdição imposta pelos governos dos respetivos países: o russo Kirill Serebrenni­kov (Leto) e o iraniano Jafar Panahi (3 Faces). Ao filme de Panahi seria atribuído o prémio de argumento, ex aequo com a italiana Alice Rohrwacher.

Cate Blanchett deixou ainda uma frase capaz de resumir um desejo de paridade entre os géneros que se refletiu, desde logo, na constituiç­ão do júri (cinco mulheres e quatro homens). Disse a presidente: “As mulheres não são uma minoria no mundo.” O que era também uma maneira de apelar à afirmação de um discurso no feminino capaz de denunciar todos os abusos e discrimina­ções. Assim o fez a italiana Asia Argento, ao apresentar o prémio de interpreta­ção feminina (atribuído a Samal Yeslyamova, a espantosa protagonis­ta de Ayka, de Sergey Dvortsevoy, drama pungente de uma mulher que, depois de dar à luz, na sequência de uma violação, tenta sobreviver em impiedosos cenários de Moscovo). Lembrando a sua presença em Cannes, em 1997, contava 21 anos, Argento disse: “Fui violada aqui por Harvey Weinstein.” E apontando para a assistênci­a acrescento­u que há ainda cúmplices “sentados entre vocês”, concluindo: “Sabemos quem são, não vamos permitir que vivam na impunidade.” A tristeza do mundo Entre os grandes títulos desta edição, o admirável Le Poirier Sauvage, do turco Nuri Bilge Ceylan, ficou fora do palmarés. Mas não há dúvida de que o júri conseguiu um equilíbrio de escolhas capaz de valorizar a pluralidad­e temática e estética dos 21 títulos a concurso. Daí a importante distinção para Spike Lee, Grande Prémio (segundo na hierarquia do palmarés) com BlacKkKlan­sman, retrato histórico do racismo capaz de ligar as memórias de finais da década de 1970 com os factos mais perturbant­es da América de Donald Trump. Daí também a distinção para Capharnaüm, de Nadine Labaki, sobre a errância trágica de uma criança nas ruas implacávei­s de Beirute, por certo um dos títulos que mais dividiram os jornalista­s e, por isso mesmo, um acontecime­nto incontorná­vel.

Algo de semelhante poderá dizer-se sobre os prémios para Pawel Pawlikowsk­i (realização) por Cold War, uma evocação das raízes do rock polaco, e Marcello Fonte (interpreta­ção masculina) em Dogman, de Matteo Garrone, desencanta­da visão de uma paisagem urbana ultradegra­dada. São filmes que, entre realismo e simbolismo, espelham uma exigência humanista que uniu os participan­tes deste festival face às injustiças do nosso presente. Recebendo a Palma para Godard, a produtora iraniana Mitra Farhani lembrou uma frase exemplar para tão cruel conjuntura: “Nunca nos sentimos suficiente­mente tristes para que o mundo seja melhor.”

Cate Blanchett lembrou os cineastas que não foram a Cannes por interdição dos seus países: o russo Kirill Serebrenni­kov e o iraniano Jafar Panahi

“Fui violada aqui por Harvey Weinstein”, afirmou Asia Argento, acrescenta­ndo que havia cúmplices na plateia

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Kore-eda, galardoado com o prémio principal do Festival de Cannes, na sua 71.ª edição, e a atriz Cate Blanchett, que presidiu o júri

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