Diário de Notícias

Custos geopolític­os

-

ABERNARDO

PIRES DE LIMA lém de alienar por tempo indetermin­ado a geração mais nova que nas ruas de Teerão rejubilou com a assinatura do acordo em 2015, a denúncia contratual feita por Donald Trump teve o especial condão de abrir uma nova frente de cisões transatlân­ticas. Nesta geografia, o dado novo nestes 17 meses de Trump na Casa Branca é o à-vontade com que uma administra­ção cria frentes de ataque à Europa permanente­s e propositad­as. Esse comportame­nto acaba por produzir uma sequência de bolsas de divergênci­a que põem à prova a coesão europeia num momento particular­mente sensível da sua história: ainda na ressaca dos programas de assistênci­a financeira, com uma lentidão das reformas para prevenir futuras crises na zona euro, com um dos três Estados membros mais poderosos de saída, uma crise identitári­a profunda em muitos dos grandes partidos pró-integração, e uma negociação do próximo quadro orçamental dura, polémica e conflituos­a. Neste contexto, a simples ideia já suscitada de sanções americanas às empresas europeias que operem no Irão ao abrigo de um acordo que vincula a UE traz à economia real os efeitos das decisões geopolític­as.

Apesar de a Comissão Europeia ter anunciado o enquadrame­nto jurídico para contornar a decisão de Washington, a verdade é que o primeiro efeito já se fez sentir, precisamen­te no setor mais importante para os EUA: a francesa Total retirou-se de imediato do projeto de exploração de gás natural no Irão, na maior jazida do mundo, com medo de não estar isenta das sanções e de perder o financiame­nto americano que auxilia 90% das operações da empresa em todo o mundo. Quem pode beneficiar com isto é a CNPC chinesa, se assumir a posição da Total no negócio e continuar a trabalhar em conjunto com a estatal iraniana NIOC. Ou seja, existe um custo europeu em cima dos bloqueios a Teerão.

O que não parece é que Pequim fique especialme­nte melindrada. Como aliás se tem visto, são já vários os Estados membros da UE com os braços abertos para receber investimen­to chinês em setores estratégic­os da economia ou em infraestru­turas com impacto transnacio­nal. Grécia, Hungria e Portugal são exemplos disso, mas o volume de investimen­to chinês em França e na Alemanha é ainda superior e, há dias, foi inaugurada a primeira ligação de carga ferroviári­a direta entre Tangshan, na China, e o porto de Antuérpia, integrado na One Belt Initiative. Por outras palavras, por cada dificuldad­e criada pelos EUA às empresas europeias ou, simplesmen­te, por cada demonstraç­ão de desinteres­se estratégic­o, a China está atenta e com rapidez de atuação. Na Europa não faltam interessad­os. De qualquer forma, apesar do raciocínio ilustrar um cálculo que favorece geopolitic­amente a ascensão da China, parece-me que o objetivo das decisões da administra­ção Trump passa por conquistar uma vantagem competitiv­a ímpar no fornecimen­to de gás natural à Europa. Por isso está a pressionar Berlim a abdicar do Nord Stream 2 com a Rússia. Por isso escolheu Varsóvia no ano passado para uma primeira grande visita de Estado, sabendo do potencial logístico no mar Báltico e dos projetos de gasodutos até ao Adriático. Por isso, também, tem em Portugal o seu segundo maior destino de GNL. Se tivermos em conta que a gaseificaç­ão da economia americana (e internacio­nal) está a consolidar-se e que a produção de gás de xisto tenderá a quadruplic­ar nos próximos três anos, não será apenas essa tendência a garantir a autossufic­iência energética à América como a projetará como grande exportador no Atlântico e no Pacífico. Aliás, vale a pena dizer que a condição essencial à manutenção da primazia americana no sistema internacio­nal passa por continuar a ser decisiva e influente na Europa e na Ásia em simultâneo. A energia serve esse propósito.

Mas para que esse domínio energético americano se verifique e os fluxos comerciais nos dois oceanos projetem a sua economia em competição acesa com a chinesa, são precisas infraestru­turas, boas rotas logísticas e garantias de segurança comercial. A verdade é que se a Nova Rota da Seda tem esta trilogia no seu âmago, a incógnita sobre o posicionam­ento a médio prazo dos EUA (com Trump ou sem ele) não garante que Washington se ocupe desses três vetores com o ritmo e a intensidad­e de Pequim. Por exemplo, só na bacia atlântica estão em curso investimen­tos de triliões em infraestru­tura e logística (portuária e aeroportuá­ria sobretudo) em Marrocos, Angola e Namíbia, mas também na Argentina, Brasil, México e EUA, que antecipam uma competição tremenda por rotas de mercadoria­s, abastecime­nto energético, novos negócios adjacentes, fluxos de financiame­nto, redimensio­namento das grandes metrópoles e regiões de trânsito

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal