MIGUEL POIARES MADURO “BRUNO DE CARVALHO NÃO TEM, CLARAMENTE, CONDIÇÕES PARA ESTAR À FRENTE DO SPORTING”
Antigo ministro fala dos riscos que a instituição corre atualmente, da impossibilidade de uma reforma na cultura do futebol, de corrupção, e deixa um elogio a Rui Rio.
Começamos pelo tema mais atual – a crise no Sporting e sobretudo os acontecimentos de terça-feira na Academia do Sporting em Alcochete. É sportinguista, já escreveu numa rede social que sentiu, “pela primeira vez, vergonha de ser do mesmo clube que certos adeptos”; agora mais a frio, e para lá desta questão da vergonha, o que é que considera que ficou revelado com aqueles acontecimentos? Acho que há duas preocupações fundamentais: a primeira é repor aquilo que é a identidade do Sporting, a imagem que o Sporting tem perante os portugueses, em primeiro lugar perante os seus adeptos e sócios, mas também a nível internacional, que não é a de um clube que possa ser compatível quer com a violência física quer com a violência verbal que, em parte, pode ter contribuído para legitimar a violência física que aconteceu. Infelizmente a direção não tem contribuído para conseguir repor essa credibilidade e essa imagem, e acho que passa muito pelos restantes sócios fazeremno; penso que têm procurado fazê-lo e, sobretudo, vão utilizar a próxima final da Taça de Portugal para passar essa imagem clara quer de pedir desculpa aos atletas, aos técnicos que estiveram envolvidos quer pedir as desculpas perante o país que creio que todos nós devemos enquanto sportinguistas. A segunda preocupação que me parece fundamental é preservar o futuro e a sustentabilidade do clube, que eu acho que está em risco, desde logo ao nível patrimonial com a possibilidade de os atletas pedirem rescisões, de os técnicos pedirem rescisões e também os patrocinadores, quem faz publicidade no clube, abandonarem o clube. Acho isso extremamente preocupante e eu tinha tido a esperança de que o presidente do Sporting percebesse – independentemente até do juízo que ele pode fazer da responsabilidade que tenha ou não nisto – que neste momento ele só contribui para associar o clube a algo que pode ter um dano patrimonial e económico fortíssimo para o clube e colocar em causa a sua sustentabilidade. Estes atos de violência de alguma forma, mesmo que indireta, têm o patrocínio do presidente do Sporting, na sua opinião? Eu não posso dizer que têm o patrocínio do presidente do Sporting, não sei, não tenho dados nesse sentido, posso dizer duas coisas: independentemente desses atos de violência, que são extraordinariamente criticáveis neles próprios, são inaceitáveis, há um comportamento da parte do presidente que, do meu ponto de vista, também não é aceitável. Legitima este tipo de comportamentos? Não direi que legitima, porque acho que nada legitima passar de uma agressão verbal a uma agressão física. Mas há um elo de causalidade entre essa agressão verbal… Julgo que há um elo de responsabilidade objetiva. Quem tem um determinado tipo de comportamento verbal, quem gere uma situação de conflito, e a publicita, com os atletas do clube, os técnicos do clube, no fundo com os trabalhadores do clube, tem necessariamente de assumir essa responsabilidade. Depois há um outro tipo de responsabilidade que é a da resposta e, desde logo, sobretudo a resposta inicial que foi uma resposta claramente insuficiente. Penso que perante a gravidade dos factos que tinham ocorrido, o presidente não podia ter falado só à televisão do clube, devia falar ao país e não só aos sócios. Ele devia um pedido de desculpa a todo o país e, em primeiro lugar, aos atletas que viveram aquelas circunstâncias, aos técnicos, aos outros que assistiram. Isso não aconteceu e também me parece que a reação é outra forma de responsabilização por parte do presidente do Sporting. Mas, independentemente do juízo que nós façamos sobre isso, o que me parece claro é que o presidente do Sporting devia perceber que neste momento é impossível qualquer pessoa poder gerir uma empresa, uma organização, contra todos os que trabalham nessa organização. Não perceber isso é colocar a sua imagem, a preocupação com o próprio acima da preocupação com o clube. Está a dizer que Bruno de Carvalho não tem condições para continuar à frente do clube? Claramente. Acho que mesmo que ele entenda que é vítima de uma enorme injustiça, que a responsabilidade é de outros, deve fazer essa batalha sem arrastar o Sporting com ele. Isso é que era colocar o clube em primeiro lugar e, infelizmente, ele não está a fazê-lo. Convém deixar claro que esta entrevista está a ser feita na sexta-feira à tarde e tudo isto tem avançado a uma velocidade quase insana. O que sabemos neste momento é o que foi comunicado na quinta-feira à noite, que há uma intenção de Bruno de Carvalho e de boa parte dos elementos da direção de se manterem em funções... Do meu ponto de vista isso exige da parte dos outros órgãos sociais uma intervenção no sentido de dissociar o clube do presidente e da direção. Isso é muito importante, mesmo para salvaguardar o património do clube e para o salvaguardar no caso de possíveis ações judiciais para rescisão de contrato. A justa causa na rescisão de contrato nestas matérias pode depender de duas circunstâncias: a primeira é os atletas invocarem que não têm segurança no posto de trabalho e a segunda é uma avaliação de assédio. Neste caso, a probabilidade é que seja feita uma relação entre as duas coisas; o discurso
público do presidente contra os atletas e os técnicos está associado à criação da própria situação de insegurança. Em termos do nosso direito do trabalho é necessário que isso seja suficiente para determinar que a relação de trabalho não é mais suscetível de ser mantida. Ora, isso parece-me que está claramente dependente da permanência de Bruno de Carvalho na presidência do Sporting; se os outros órgãos do clube exercerem as suas funções e os seus poderes no sentido de agir para apurar se houve ou não um comportamento que pode ser qualificado como assédio, qual é a responsabilidade do presidente e dos outros órgãos de gestão nesta matéria relativamente aos atletas e ao treinador, e agirem no sentido de separar a responsabilidade do clube da responsabilidade do seu presidente estarão a agir para proteger desde logo o Sporting perante esses eventuais processos. Como é que se chegou até aqui? Há poucas semanas o presidente foi relegitimado numa assembleia geral. Como é que é possível ter-se chegado até aqui em tão curto espaço de tempo? Eu já via, desde há bastante tempo, traços e situações comportamentais da parte do presidente do Sporting que indicavam que, independentemente de até podermos concordar com ele nalguma avaliação que ele faça sobre problemas que existem no futebol – e tem razão –, e de podermos também identificar aspetos positivos nalgumas dimensões da gestão desportiva e económica do clube, havia riscos muito grandes de a sua presidência ser muito dominada por uma absoluta concentração de poderes e uma grande intolerância relativamente à crítica. E essa dimensão comportamental que durante muito tempo foi desvalorizada como sendo apenas um traço de comportamento, a determinada altura, como se comprova agora, transforma-se numa questão de fundo, deixa de ser apenas uma questão de estilo, é mesmo uma questão de fundo, e acho que foi isso que aconteceu. Preocupa-o a forma como Portugal vive o futebol? É um fenómeno que não é recente. Estamos a falar de um desporto que é, semana após semana, jornada após jornada, mais vivido fora de campo do que dentro de campo. Falo dos programas de televisão quase diários, de um tipo de linguagem que já extravasa algumas fronteiras. É um cenário que o preocupa? Preocupa-me, mas não é exclusivo de Portugal. Diria que no caso português os problemas da cultura do futebol, a falta de integridade, a falta de ética da cultura do futebol, têm uma maior visibilidade pública porque no nosso espaço comunicacional a forma de falar e de debater o futebol transforma-se num dos instrumentos de influência sobre o futebol. Se calhar em muitos outros países, e mesmo nas altas instâncias do futebol, os problemas de integridade, de corrupção política, quando não financeira e económica, no futebol são tão ou mais graves do que no nosso caso. Em Portugal, eles assumem uma visibilidade maior porque a própria presença mediática transformou-se num mecanismo de influência indireta ou de procura de influência no futebol. Há assim tantos países na Europa que tenham debates quase diários em canais por cabo com representantes de clubes? Não, mas no nosso caso, se calhar, os problemas do futebol têm mais visibilidade, não são menores do que noutros Estados, mas têm mais visibilidade e assumem uma dimensão muito verbal, muito de debate, que depois também começa a ter um impacto enorme em termos de violência, que nós não tínhamos. Pareceu durante algum tempo que a violência verbal se esgotava em si mesma, quase como se os adeptos utilizassem esses debates para expiar todas as dificuldades e todo o antagonismo que existia no futebol, mas sem depois o manifestar em termos físicos e de comportamentos violentos. Hoje em dia vemos que já não é assim e, em parte, isso também já era o caso. Estes factos que aconteceram são gravíssimos, têm uma gravidade como nunca aconteceu em termos da dimensão do ataque a toda uma equipa no seu próprio centro de treinos, mas nós já tivemos casos de adeptos mortos, casos de ameaças feitas a jogadores ou a árbitros. Portanto, aquilo a que assistimos não é necessariamente novo. O que é necessário mudar, a começar por uma eventual mudança de legislação, ela seria benéfica, ajudaria a resolver alguma coisa ou há algo mais profundo para tentar resolver para evitar que cheguemos a situações como a que vivemos nesta semana? A violência no desporto é apenas a manifestação mais extrema de uma doença profunda no corpo do futebol, é como que o sintoma mais grave de um problema muito mais profundo que existe na cultura do futebol. Gostaria que refletisse um pouco connosco sobre a realidade nacional. Nesta realidade nacional acho que há dois aspetos fundamentais que têm de ser abordados em paralelo. O primeiro é credibilizar o funcionamento do próprio futebol, ou seja, que as entidades que o gerem, que os órgãos independentes, por exemplo os disciplinares, os arbitrais, reforcem os mecanismos que garantam a sua independência, que previnam conflitos de interesses; todo um conjunto de questões fundamentais para credibilizar como o futebol é gerido, como toma as suas decisões, a imparcialidade do mesmo perante todas as equipas, a prevenção de conflitos de interesse. Ao mesmo tempo, fazendo isso, haverá autoridade para tomar medidas muito mais duras desde logo no controlo do próprio debate público sobre futebol, ou seja, acho que deve haver sanções muito mais duras relativamente aos agentes do futebol que têm determinado tipo de discurso e utilizam a violência verbal nessa ma-
“O futuro e a sustentabilidade do clube estão em risco, desde logo ao nível patrimonial, com a possibilidade de os atletas pedirem rescisões, de os técnicos pedirem rescisões e também os patrocinadores abandonarem o clube” “Há um elo de responsabilidade objetiva [entre Bruno de Carvalho e os acontecimentos de Alcochete]. Quem gere uma situação de conflito com os atletas e os técnicos do clube tem necessariamente de assumir essa responsabilidade” “O presidente do SCP devia perceber que é impossível a qualquer pessoa gerir uma organização contra todos os que lá trabalham”