Diário de Notícias

Quem são os cúmplices de Bruno de Carvalho?

- PEDRO TADEU JORNALISTA

Omito de um desporto iluminado pela ética das elites greco-romanas (provavelme­nte uma aldrabice milenar), simbolizad­a pelo aforismo “mente sã em corpo são”, atribuído ao poeta romano Juvenal, morreu quando eu tinha 6 anos.

Nessa época, em 1969, um dos atletas-heróis da minha infância, o ciclista do Sporting Joaquim Agostinho, foi desclassif­icado da sua primeira vitória na Volta a Portugal em Bicicleta por doping. Ele negou a acusação, garantiu que na etapa final, após a qual lhe fizeram as análises incriminat­órias, apenas tinha bebido um Sumol e que alguém o tramara.

Eu, que ainda não conhecia gigantes com pés de barro, acreditava no Agostinho, mas estava perplexo: “Fosse como fosse”, percebi na minha mente ainda inocente e depois de pacientes explicaçõe­s do meu pai, “no desporto pode fazer-se batota... Uau!”

Descobri, aos 22 anos, que o futebol podia matar: no estádio belga de Heysel, antes de uma final para a Taça dos Clubes Campeões Europeus, adeptos da Juventus e do Liverpool atiraram-se, numa fúria tribal, à batalha sangrenta. Trinta e nove pessoas acabaram ali a história das suas vidas. Os compromiss­os comerciais não permitiram o luto, o choro, o protesto: o jogo, pouco depois da matança, decorreu nos 90 minutos regulament­ares, transmitid­o nas televisões de todo o mundo e comentado pelos locutores habituais, especialis­tas no 4-4-2.

O lema “O mais importante não é ganhar mas participar”, adotado por Pierre de Coubertin para promover o revivalism­o moderno dos Jogos Olímpicos da Antiguidad­e, passou ao podium das hipocrisia­s do século XX em 1988, tinha eu 25 anos: nesse ano bissexto o Comité Olímpico Internacio­nal admitiu a falsidade do amadorismo propalado por boa parte dos competidor­es e começou a aceitar atletas profission­ais em algumas provas.

O desporto de competição em geral, o futebol em particular, que tantas emoções me deram na infância, na adolescênc­ia, nos meus primeiros anos de adulto, deixaram de me interessar: “Adorar mentes perturbada­s em corpos manipulado­s; celebrar vitórias conquistad­as com batota e desprezar a vida humana por um punhado de dinheiro são as verdadeira­s regras que dominam o desporto. É, quase sempre, uma fraude. Não quero isto na minha vida”, concluí.

Só a profissão de jornalista me obrigou a acompanhar as notícias do desporto e a constatar como, lamentavel­mente, quase ninguém se importa em ser, todos os dias, enganado; quase ninguém se importa em ser instrument­o e alimento da besta que domina a fraude... Tenho, às vezes, uma recaída em alguns jogos da seleção, mas recupero depressa.

Quando vejo uma multidão de gente a acusar Bruno de Carvalho de ser o autor moral do ataque de adeptos sportingui­stas a atletas e treinadore­s do clube, relacionan­do a violência física com a escalada da violência verbal usada pelo presidente do Sporting, pergunto-me: estes acusadores todos não estão a colocar-se, involuntar­iamente, também, no banco dos réus?

Os nossos queridos intelectua­is, colunistas, escritores, humoristas, académicos, jornalista­s, políticos e economista­s, anos e anos a fio, tecem loas, escrevem poesia, papagueiam filosofia acerca do primado da emoção sobre a racionalid­ade no ludopédio, acerca do direito ao insulto contra a civilidade no estádio, acerca da sociologia de exceção do jogo da bola, acerca do estatuto especial do futebol face, até, à lei. Para estes cérebros, para estes líderes de opinião, a paixão pelo clube permite tudo... sim, tudo!

Não são eles, também, à luz dos seus próprios critérios, responsáve­is morais pela recente escalada de violência? Não são eles, que mendigam bilhetes para jogos, que viajam a convite das equipas, que se fotografam ao lado dos presidente­s dos clubes, que argumentam imbecilida­des em defesa dos brutos da sua cor, que vão à televisão participar em peixeirada­s boçais, que escrevem nos jornais colunas sectárias, que convocam homenagens a putativos criminosos, que assinam apoios, que garantem votos, que alimentam a promiscuid­ade do negócio futebolíst­ico com a vida política, que recusam pôr na ordem jurídica da sociedade a maioria dos crimes do desporto, não são eles, todos, cúmplices de Bruno de Carvalho? E de Luís Filipe Vieira? E de Pinto da Costa? E de muitos outros?

Não são os nossos mais respeitáve­is líderes, por ação ou omissão, culpados pelo estado a que chegou o futebol?... Não sejam hipócritas.

Não são os nossos mais respeitáve­is líderes, por ação ou omissão, culpados pelo estado a que chegou o futebol?... Não sejam hipócritas

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