Diário de Notícias

O sonho americano

- ANA RITA GUERRA, em Los Angeles JORNALISTA

À porta do cinema, dois avisos secaram-me a boca. “É proibida a entrada neste estabeleci­mento com arma oculta”, li nos cartazes, segundo o artigo de tal e tal, com as seguintes repercussõ­es para quem desobedece­r, porque o cinema não é local onde armas sejam bem-vindas. Lá dentro, metade dos filmes em cartaz celebravam a glorificaç­ão da violência armada. O país chorava mais um tiroteio, sem perceber a incongruên­cia desesperan­te de uma sociedade que incentiva a posse de armas mas envia pensamento­s e orações quando elas são usadas em incidentes trágicos. É frequente ver estes avisos a pedir que os consumidor­es não levem armas ocultas para dentro dos estabeleci­mentos em Austin, capital do Texas. Apesar do liberalism­o da cidade, as leis do Estado sobrepõem-se ao pendor democrata dos seus habitantes. E no Texas é possível comprar armas a partir dos 18 anos, sem necessidad­e de licença nem limites na quantidade, capacidade, munições ou acessórios.

Foi a três horas de carro da capital do Estado que um adolescent­e de 17 anos entrou na sua escola secundária com uma espingarda e um revólver e matou dez pessoas na sexta-feira, entre elas uma rapariga que recusara os seus avanços amorosos. Os nomes das vítimas são diferentes, olocalé outro, opad rã oéomes mo. A resposta também: pensamento­s e orações enviados pelos políticos que se recusam a tomar medidas para evitar que isto continue a acontecer.

Cheiram a podre essas palavras requentada­s de mortes anteriores. Estes poderosos que enchem os bolsos com dinheiro da National Rifle Associatio­n procuram a cada tiroteio encontrar mais explicaçõe­s para esta crise unicamente americana: são as doenças mentais, é o bullying, são os videojogos violentos, agora foi a miúda que magoou o rapaz com a sua rejeição. O vice governador do Texas, Dan Patrick, disse que o problema é que as escolas têm demasiadas entradas e saídas. O novo presidente da NRA, que trabalha para prevenir li mi taçõesàcom­pr ade armas, sugeriu que aquestãoé os miúdos abusarem de Rita lin,receit ado para controlar hiperativi­dade e défice de atenção. Tudo menos a abundância de armas e a facilidade de comprar ou arranjar uma. No caso de Santa Fe, Dimitrios Pagourtzis pegou nas armas do pai. Há três meses, Nikolas Cruz usou uma espingarda que comprou legalmente para assassinar 17 pessoas numa escola em Parkland, Florida. Há seis meses, Devin Kelley matou 26 pessoas numa igreja em San Antonio, Texas, com armas que também possuía legalmente. E, enquanto os corpos crivados de balas se amontoam nos cemitérios, as cabeças falantes enchem as televisões com teorias rocamboles­cas que desembocam na inevitabil­idade de tudo isto. Perguntara­m a uma sobreviven­te se alguma vez pensou que tal aconteceri­a na sua escola e ela respondeu que sim: era uma questão de tempo. Dizem-lhe que não se pode fazer nada, cruzes ao peito, palmas das mãos juntas. Enviam vítimas e orações a Deus Nosso Senhor, para que possam continuar a vender armas na Terra.

Esta esquizofre­nia da mesma ala que se diz pró-vida não se demove com cadáveres de crianças. O que está na Constituiç­ão é imutável e tem de ser protegido, mesmo que a interpreta­ção esteja errada – porque estaéa cultura americana. Dias antes do massa crede Santa F e, uma finalista da Universida­de Estatal de Kent, Ohio, passeou-se pelo campus com uma AR-10 a tiracolo. Para “celebrar a formatura”, disse. A universida­de não permite o transporte de armas dentro do recinto, mas a jovem conseguiu andar todo o dia a tirar fotos com a sua semiautomá­tica para fazer um figurão nas redes sociais. A glorificaç­ão das armas é tão americana como a tarte de maçã.

Quem já não vai celebrar nenhuma formatura é Sabika Sheikh, uma estudante paquistane­sa que veio para os Estados Unidos à procura de melhor educação. Escapou às mãos dos talibãs para morrer pelas balas de Dimitrios Pagourtzis no país da liberdade.

“Não podemos viver com medo”, dizem-me sempre no rescaldo destes tiroteios tão frequentes que já deixam as pessoas anestesiad­as. Existe uma sensação de fatalidade. Não é se, mas quando voltará a acontecer. O sonho americano vem manchado de sangue, enfeitado com os dólares de uma indústria multimilio­nária que sacrifica os seus filhos à glória da pólvora.

Dias antes do massacre de Santa Fe, uma finalista da Universida­de Estatal de Kent, Ohio, passeou-se pelo campus com uma AR-10 a tiracolo. Para “celebrar a formatura”, disse

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